O volume que coloca em circulação a poesia do nosso simbolista Pedro Militão Kilkerry consiste em outra evidência do que ainda resta fazer no rebalizamento de nossa literatura. Augusto de Campos passou longo tempo a pesquisar intensamente o que poderia restar da obra de Kilkerry, frequentando bibliotecas, consultando parentes e amigos do poeta, in loco na Bahia. O volume apresenta a mais farta documentação coligida, ou seja, fragmentos, manuscritos em fac-símile, a prosa e inúmeros artigos que o simbolista baiano publicou. Além disso, as traduções de alguns poetas franceses, realizadas, aliás, por quem, segundo testemunhos, conhecia diversos idiomas.
O que salta aos olhos, logo de imediato, é que, ao contrário dos expoentes oficiais do nosso simbolismo - Cruz e Souza e Alphonsus de Guimaraens - vinculados mais ao contabile verlainiano e à imagética bem comportada de outros poetas menores da matriz daquele movimento, Pedro Militão Kilkerry é o nosso principal simbolista de estirpe mallarmaica e com traços visíveis da temática e estilo de Baudelaire. São metáforas arrojadíssimas, se levarmos em conta inclusive, o local (Brasil) e a época; é o jogo de assonâncias, o uso de palavras insólitas, em suma, uma fanopéia com alto grau de originalidade, vinculada a uma sonoridade peculiar. Por isso mesmo, muito mais dele, em vez de Alphonsus ou Cruz e Souza, quem se aproxima de Augusto dos Anjos.
Até mesmo a palavra obscena está presente em sua obra, que fosse por intenção ou simples intuição, cumpria assim a função salutar de livrar-se de velhos jargões, do lugar comum, enfim, de evitar "poetizar seu poema", como diz João Cabral de Melo Neto em seu antológico "Alguns Toureiros". Basta notar o vocabulário, os enjambements, a intensidade alusiva, o verbo e o som novos de um soneto, como "O Cetáceo", de uma modernidade a toda prova. Para a forma de mestres, como Petrarca, Rossetti ou Camões, nada melhor do que a revitalização com outras formas.
Kilkerry, agora, não apenas pode ser abordado pelas gerações mais recentes, como obriga, como Sousândrade, a refazer-se um setor de nossa história literária.
Correio da Manhã
17/03/1971