A leitura do ABC da Literatura (ABC of Reading), de Ezra Pound, cuja tradução foi, há pouco, lançada pela editora Cultrix, ainda pode - decorrido tanto tempo de seu lançamento - funcionar como instrumento desfossilizante para o ensino da mesma literatura: Com tôdas as possíveis injustiças no escalonamento de valôres, constitui-se em exemplo mais do que salutar do pragmatismo fecundo. Pois faz notar que, antes de teorizações e abstrações renitentes, redundantes, em tôrno do objeto, é preciso tomar contato com o próprio, em si, fazer suas opções. Feito a anedota do sujeito que dissertou incessantemente, com terminologia arqueológica e científica, a respeito de determinada coisa e não sabia como era, de fato, essa coisa - muito menos o seu funcionamento real.
Há duas coisas profundamente deturpadas e contraditórias (e, isto, não é somente um mau privilégio nacional) em relação ao ensino de literatura, que despertam no aluno, inexperiente no assunto, o horror à literatura, mormente à poesia. A cronologia e o método. Em lugar de se iniciar o estudante com textos e análise a partir dos autores contemporaneous - que se referem a uma realidade que êle vive ou conhece - atiram-no defronte do passado mais remoto, com obras e autores que são matérias para filólogos ou especialistas. Sem a sensibilidade desperta, ainda em geral despojado da experiência cultural, o aluno tende a se desinteressar, incapaz para, de pronto, perceber o valor estético do assunto. E, assim, de ano para ano, vem caminhando a cronologia, sem que, amiúde, consiga o professor chegar sequer ao princípio do século XX. É preciso que uma pessoa leia Drummond antes e Camões depois. A cronologia só deveria ser instaurada depois que a semente do interêsse literário esteja normalmente a florescer. Quanto ao método, nem é necessário invocar aquela incrível e obrigatória análise lógica e gramatical que se mandava o principiante fazer de trechos de Os Lusíadas. Basta assinalar, em têrmos gerais, o logicismo exacerbadamente cartesiano com que obrigam uma pessoa a traduzir o porque de determinado ponto de vista. Não se trata, aqui, evidentemente de inocular o culto ao dogma, mas de mostrar que, nem sempre, o instrumento logicista traz o ímpeto da dialética. Muitas vêzes, a mera justaposição de dois ou mais elementos de exposição, dentro de um ensaio ou comentário crítico, faz brotar a idéia ou conclusão desejada. Porém, fica impossível colocar um porque discursivo para traduzí-la, sob pena dela perder muitas valências de seu campo referencial, de afogar a instigação para várias sugestões. Veja-se, no ABC of Reading, como Pound preconiza o método de presentificação análogo ao das laminas do biologista. Veja-se também como a sua montagem de textos e comentários é funcional e antilogicista, sem explicar êle porque a realizou.
A casualidade verbal do expositor embaça a percepção do aluno ou leitor diante da obra. A descontinuidade de fatos e coisas que se oferecem à nossa percepção se choca com os antolhos do racionalismo linear. Aí está o sucesso de The Medium is the Massage, de McLuhan, para mostrar um critério não-lógico de exposição. Ou o aproveitamento muito mais eficaz dos alunos, com o sistema audiovisual no ensino de línguas, em lugar de começar pela gramática, esta, sim, outra especialidade para linguistas. Enfim, o que a TV ensina indutivamente e que nenhum conferencista pode ensinar.
Correio da Manhã
08/08/1970