Os Condenados, de Oswald de Andrade, está em relançamento através da Editôra Civilização Brasileira, que retomou o bastão da Difusão Européia do Livro no sentido de colocar de nôvo em circulação a obra daquele que foi o mais radical e inconformado entre os nossos modernistas de 1922. Virão em seguida outras obras ainda mais importantes de Oswald, a começar por Serafim Ponte Grande, um dos seus romances mais admiráveis, não apenas sob o ponto de vista da linguagem, mas no que encerra de choque anticultural - ou seja, o deboche do stablishment da época.
Num momento, como o atual, onde tanto se fala de contracultura, a partir de dados, como movimentos underground, drogas, hippismo & adjacências, é preciso notar que Oswald foi na realidade, o nosso primeiro marco no gênero, sem a importação dos baudelairianismos de praxe. Fêz a contracultura, quando pregou a antropofagia (em parte, via Marinetti), a "poesia pau-brasil", quando polemizava através de um misto de virulência e sintaxe telegráfica, renovava o teatro ou escrevia romances, como o citado Serafim Ponte Grande ou Memórias Sentimentais de João Miramar.
A sua radicalização gerou a incompreensão, o abandono e o black-out editorial, que durou decênios. A revalorização da sua obra, hoje já considerada de inobjetável importância, só começou a surgir em fins da década de 1950, graças ao movimento de poesia concreta, que lhe deu a merecida posição dentro do trabalho de organizar a verdadeira história, a história-processo, de nossa literatura. Tal como ocorreu com João Cabral de Melo Neto (também devidamente valorizado pelo movimento concreto), que só chegou ao reconhecimento através do teatro com Morte e Vida Severina, uma de suas obras menos importantes, foi mediante a representação de O Rei da Vela que Oswald atingiu o nível decisivo da aceitação, num momento em que já estavam em voga coisas como o tropicalismo, do qual era uma espécie de precursor avant la lettra.
Uma língua agressiva, expressiva, sem complexos de colônia, sem vínculos a ditames de natureza sintático-gramatical que ainda atavam o nossos autores. Uma linguagem poética que adotava a tendência analógica da montagem ideográfica em boa parte das invenções. O poema pílula, refletindo essa montagem: "América do Sul/ América do Sal/ América do Sol". Ou até o poema de uma só palavra como aquele sob o título de Amor: "humor". Ou os manifestos redigidos numa linguagem instigante, polêmica, econômica.
Dentro disso tudo, Oswald não pode ser considerado apenas um "modernista", consoante a aferição acadêmica. Mesmo porque, se, hoje, a obra de muitos modernistas de 22 já está devidamente catalogada, estática, sem mais fornecer elementos atuantes para o processo de transformismo, a dêle ainda traduz um ponto de referência dinâmico.
Pedia uma poesia de exportação e, não, de importação. Hoje, a contracultura em que muitos navegam, sob a miragem de Pôrto Rico, da pop art, das sombras de Nova York ou San Francisco, encontra uma réplica bem brasileira, de quase meio-século, com a virulência oswaldiana. Pois se uma idéia ou concepção de contracultura baseiase numa criatividade fundada na negação de valôres éticos e estéticos, pelos quais se norteiam os meios de expressão do establishment, aí fica mesmo o que o autor de Serafim tinha a oferecer em matéria de vida x arte. Era começar tudo novamente.
"Tupi or not tupi". Devorar. Assinalou o marco que foi a degluticão de Dom Pero Fernandes Sardinha. Entrou de sola em cima do convencional, da tradição bien pencant. Polemizou intensamente e, embora tivesse, às vêzes, de engolir os estilhaços das próprias bombas que lançava, morreu intacto - isto é, como aquêles poucos que durante a vida se esforçaram em não transigir, em atuar, em essência, criativamente: Mallarmé, Pound, Maiakovski.
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Repor tôda (ou pelo menos grande parte) da sua obra ao alcance
do público traz a importância de permitir que se possa repensar Oswald em têrmos mais amplos e constantes. A Difusão Européia do Livro havia reeditado as Poesias Completas, Memórias Sentimentais de João Miramar (romance que tem um capítulo formado apenas por uma só e célebre frase: "afinal… Dona Lalá") e O Rei da Vela. Esses volumes ficaram praticamente esgotados.
Agora é a vez da Civilização Brasileira completar aquilo que ficou inacabado e constitui vetor essencial da nossa cultura, não literária no sentido tradicional da palavra, mas até antiliterária, enfim a contracultura.
Correio da Manhã
10/02/1971