A coletânea "Poesia Erótica e Satírica" reúne os melhores poemas do autor de "A Escrava Isaura"
"Silfo medonho a vaguear no limbo.'' Um susto -eis a imagem.
Era assim que o amigo (e também poeta) Pedro Fernandes homenageava Bernardo Guimarães, em 1868. Nada a estranhar: de Bocage ("nume ufano", "mádidas Nereidas") a Vicente Celestino, encontra-se disso "amiúde" no percurso da literatura portuguesa. E não somente nesta: outras ainda mais clássicas e eruditas oferecem estros e nênias de tal jaez. Pois também ainda, hoje em dia, inexistem os devidos túmulos para aqueles barrococós e condoreiros de praxe.
Em Pedro Fernandes, valeu, pelo menos, a intenção. Antigamente, Bernardo Guimarães era mais conhecido e respeitado como romancista. O seu mais famoso romance - "A Escrava Isaura" (1875) -, atualmente tido como medíocre pela crítica, retornou à tona em termos internacionais graças à TV (outro código, outra linguagem).
Nenhum literato ou especialista em assuntos quentes, como semiótica, semântica geral, estruturalismo, pós-modernismo etc. & tal, estará interessado nas peripécias dos personagens; muito menos, no drama do “Seminarista”.
Neste século, Bernardo Guimarães (Ouro Preto, 1825-1884) resurge como poeta, embora em contexto fragmentário. Isso porque - com exceção do antológico "Soneto" ("Eu vi dos pólos o gigante alado") - talvez nenhuma obra sua de melhor criatividade tenha unidade estética.
Manuel Bandeira, em "Apresentação da Poesia Brasileira" (1944), diz peremptoriamente que "o poeta é superior ao romancista", chamando a atenção para o poema "O Devanear do Cético" (em nosso entender, de menor importância). Alphonsus de Guimaraens Filho, em sua introdução às poesias completas de Bernardo Guimarães, na edição do Instituto Nacional do Livro, em 1959, justificou essa edição em decorrência de opiniões sobre a "superioridade do poeta". Haroldo de Campos, em seu ensaio "Poética Sincrônica", publicado originalmente no "Correio da Manhã", em 1967, considerando-o romancista medíocre, ressalta a parte burlesca e satírica, de "bestialógico" e "nonsense", de sua poesia, frisando além do mais que, nesse sentido, é "um precursor brasileiro do surrealismo''.
Lança agora a Editora Imago, com organização e introdução de Duda Machado, a " Poesia Erótica e Satírica''. Uma coletânea com o melhor do que se poderia espremer de Bernardo Guimarães, a trazer inclusive "O Elixir do Pajé" e “A Origem do Mênstruo" - poemas omitidos "sem nenhum pudor" na edição do INL, como nota Duda.
Mas, apesar da suma, continuamos diante de um poeta contraditório, oscilando entre a novidade e a vulgaridade; mais vigor, menos rigor. Tem influências de Victor Hugo e Vigny: "Cenas do Sertão", em toada e descrição, lembram "A Morte do Lobo". Há coisas à la Wordsworth (sem que Guimarães necessariamente haja lido o "lake poet" ) nas peças em torno da natureza ou num poema extenso (cerca de 500 linhas), como "Baía de Botafogo", que não figura nesta antologia.
Pode-se denotar, no entanto, ressonâncias posteriores de sua obra; as mais recente possivelmente em Raul Bopp. E as mais acentuadas num poeta muito mais conhecido: Augusto dos Anjos. Exemplo: "Es tu, dia fatal, és tu culpado/ Deste funéreo sonho/ Que já por morto, e hóspede me dava/ Do túmulo medonho./ Es tu que assim me trazes à lembrança/ Um triste cenotáfio,/ E na campa me pões, lavrando eu mesmo/ o meu próprio epitáfio!" ("Ao Meu Aniversário"); "Eu tremo todo! - crebos calafrios/ Os membros me percorrem." ("Dilúvio de Papel"); ou "Onde está a criar cabelos brancos/ Na lide ingloriosa/ De alinhavar a trancos e a barrancos/ Insulsa e fria prosa!" (“Dílúvio de Papel 3”).
Do humor ao romantismo agudo, muitas variantes podem ter costurado a "forma mentis" de Bernardo Guimarães, desde Ovídio, passando por Bocage e chegando a seus contemporâneos. Porém, sua vereda mais chocante, instigante, é aquela do humor que pode ter as roupagens da sátira, do chiste, do pastiche, da paródia, até mesmo do deboche. E o mais curioso, principalmente com relação à sua época, é o de haver instalado, como temas de poemas, coisas ,e assuntos tais quais a moda, a saia, o cigarro, o charuto, o nariz, a rede etc. Motivos modernos e prosaicos.
Vamos a um panorama dos trechos mais expressivos ou ''touchstones” dessa obra. Vamos começar pelo "Soneto" já citado, com o terceto final que, de novo, Augusto dos Anjos assinaria:
"-'Eu sou' - me disse - 'aquele anacronismo,/ Que a vil coorte de sulfúrios ódios/ Nas trevas sepultei de um solecismo…' ".
O "Dilúvio de Papel", com cerca de 730 versos, dá a impressão de ter sido um dos poemas mais ambiciosos. Mas, como registra Duda Machado, ''com fraquezas evidentes e descontroles na arquitetura de composição". Um dilúvio de versos, com a enumeração de jornais, com a boa abertura da parte 2 -"Já o sol se envolvia em seus lençóis'' -; na 6, "Em pávido desmaio/ Tremem os arvoredos"; e a indagação na 8: "Oh! século dezenove,/ Ó tú, que tanto reluzes, és o século das luzes,/ Ou século de papel?"
Na longa "balata" de "Galope Infernal'', estamos com a fanopéia: "Pelo dorso dos montes, que fumegam,/ Róseos vapores lúcidos se estiram''. ''Ao Cigarro" - unindo este à mulher como forma de encanto - traduz um escândalo moral para o século passado e, para o atual, um escândalo cardio-ecológico. "A Origem do Mênstruo": poema pesadíssimo em seu tempo; hoje, banal. "Disparates Rimados" traz o "nonsense": "O queijo – dizem os sábios -/ É um grande epifonema,/ Que veio servir de tema/ De famosos alfarrábios''. "À Moda" e "À Saia Balão", já pelo título, são evidentemente sátiras: “Para ver tua beleza tão prezada/ Sumir-se-te afogada/ Nesse pesado pélago de roupas?”. Em suma, o inventivo e bocagiano "Elixir do Pajé" ouviria em seu tempo, da censura, a mesma frase da Passionária. Por isso, seu autor volta à História através dos lances mais arejados do humor e da polêmica.
Folha de S.Paulo
10/01/1993