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O poema em foco - II / Stéphane Mallarmé: Brinde

Poeta navegante, criador de novas rotas, Mallarmé deixou inacabado o instigante Igitur, um texto sobre o infinito.

Nada, esta espuma, virgem verso
Apenas denotanto a taça;
Como longe afogam-se em massa
Sereias em tropa ao inverso. Navegamos, ó meus diversos
Amigos, eu jâ sobre a popa,
Vós a proa que rompe em pompa
Vagas de trovões adversos.
Empenho-me em pura voragem
Sem mesmo temer a arfagem
A de pé, este brinde erguer:
Solitude, recife, estrela,
A não importa o que valer
O alvo desvelo em nossa vela.

A aventura poética

Salut (Brinde) é um dos mais famasos sonetos de Mallarmé. É também um poema sobre ofício poético, onde já se encontram alguns elementos conotados com isso que, mais tarde, ele iria desenvolver em sua obra máxima, Un Coup de Dés (Um Lance de Dados): a viagem, o mar, a página em branco, a procura do absoluto, na solidão elidindo o acaso.
Esse poema possui, ao mesmo tempo, o seu aspecto histórico-biográfico: foi recitado por Mallarmé, aos 51 anos de idade, quando, em 15 de fevereiro de 1893, presidiu o sétimo banquete da revista La Plume, onde se reuniram apenas poetas em torno de mesa. Ao término, Mallarmé foi ovacionado pelos presentes. Muito melhor do que o discurso, evidentemente, era "ce sonnet, en levant le verre, récemment à un Banquet de La Plume, avec l'honneur d'y présider", como declarou o mestre do simbolismo. Imediatamente depois, aquela revista publicou o soneto em sua primeira página, com o título, na época, de Toast (mais tarde, modificado definitivamente para Salut e que consiste em peça de abertura de quase todas as edições de obras poéticas do autor).
La Plume assim relatou o banquete: "Um leve sorriso nos lábios, o olho assim como algo estático, emocionado, tremendo tal uma jovem virgem sobre a qual pesassem os olhares de uma assembléia inteira, o presidente do sétimo banquete, esse puro poeta, esse homem encantador, Stéphane Mallarmé, ergue-se, pega a sua taça e, com uma voz sonora, embora mal empostada, recitou o estranho poema impresso na capa desta revista. Em seguida, as mãos dos convivas fazem ressoar a sala com aplausos retumbantes: três ovações sucessivas sublinham a afeição sincera, a glória do mestre, espantado, ele, o esteta intransigente, com essa unanimidade dentro do entusiasmo..."
São muitas as exegeses do Brinde. Charles Mauron, nas estrias mais acadêmicas, diz que, para o poeta, esse soneto era uma saudação sem mais importância ou peso do que a "mousse de champagne" da taça erguida, em suma, outra versão da viagem maritime como aventura idêntica à vida literária.
Wallace Fowlie, especialista norte-americano em Literatura Francesa, em seu livro, Mallarmé, interpreta o poema mediante análise que pode ser desdobrada sinteticamente nas seguintes etapas: 1) a espuma invoca a imagem do mar e as sereias imergindo; 2) a mesma espuma, tal como uma linha poética, designa apenas a superfície, enquanto a realidade estã imersa; 3) o banquete dos poetas toma-se a visão de um navio, onde Mallarmé esta na popa; · 4) o brinde de Mallarmé contém os elementos da aventura poética; 5) a vela da embarcação tem a brancura da folha de papel; 6) o poema vincula-se à concepção baudeleriana de fuga e viagem, como Parfum Éxotique, por exemplo; 7) constitui-se Salut numa das rotas temáticas para Un Coup de Dés; 8) Rien (nada), palavra de abertura do soneto é também uma das palavraschave em toda a obra do poeta.
Albert Thibaudet, depois de fazer notar que o poeta realiza a conotação verso-taça graças à quase homofonia das duas palavras francesas (verre e vers), alega que o terceto final não seria bem uma frase, porém uma constelação de quinze palavras em volta da folha em branco. Já, por seu turno, Charles Chassé, além de apontar a mesma conotação, deduz: "Seu objetivo era de conferir aos versos sensações semelhantes àquelas proporcionadas pela música, mas isto através de recursos visuais". Guy Michaud chama a atenção para o engenhoso jogo de palavras, mormente em tomo do termo vers (verso), ou seja, além de vers, divers, hivers, envers, mais do que rimas ricas, a autoreiteração do verso, aspecto do poema sobre o poema. Identicamente, aduzimos, está a rima do primeiro com o último verso do terceto final, quando étoile (estrela) reaparece como notre toile, enquanto a palavra toile pode significar, ao mesmo tempo toalha e vela, sem falar na alusão à página em branco, sobre a qual medita sempre o poeta.
Enfim, Pierre-Olivier Walzer invoca o poeta-navegante, já presente um em outro soneto tão notável, como o da figura de Vasco da Gama: "Todo destino poético é feito de risco e aventura. Da escuma, esse nada, sai tudo". E compara a idéia de solidão e absoluto na nomeação triádica contida em ambos os sonetos e que se correspondem precisamente: de um lado, solitude, récif, étoile; de outro, nuit, désespoir et pierrerie.

Necessária traição

Críticos ou especialistas de formação tão heterogênea, como Ezra Pound, Walter Benjamin ou Roman Jakobson, chegam a conclusões análogas quanto ao problema da tradução, principalmente a de poesia: a) traduzir é trair, ou seja, trair o necessário ao nível semântico, a fim de que sejam preservados os efeitos e a estrutura significante; b) tradução é um problema de forma, adaptação idiomática do propósito estrutural. Assim é que, neste poema, a fim de sustentar, em nossa lingua, o mencionado propósito estrutural, na oitava linha, em vez de verter diretamente a palavra hivers para o equivalente de significado, invernos, preferimos lançar a palavra adversos, que assim, mantém a reiteração dos versos autoreferentes nas quatro linhas dos dois primeiros quartetos.

A Meia-Noite

Certamente subsiste uma presença de Meia-Noite. A hora não desapareceu por um espelho, não está oculta em tapeçarias, a evocar um mobiliário através de sua vazia sonoridade. Recordo-me que o seu ouro dissimularia, na ausência, uma jóia nula em fantasia, rica e inútil sobrevivência, a não ser que, na complexidade marinha e estelar de uma ourivesaria, se lesse o infinito acaso das conjunções.
Revelador da Meia-Noite, ele jamais, então, indicou semelhante conjuntura, pois aqui está a única hora que criou: e que, do infinito, as constelações e o mar se separem, permanecidas, nas exterioridade, recíprocos nadas, para lá deixar a essência, à hora unida, forjar o presente absoluto das coisas.
E, da Meia-Noite, perdura a presença, na visão de uma câmara do tempo, cujo misterioso mobiliário detém um vago frêmito de pensamento e luminosa fenda de retorno de suas ondas e de seu primeiro espraiar-se, enquanto se imobiliza (num limite móvel) o local anterior da queda de hora numa calmaria narcótica do eu puro, longo tempo sonhado; mas de que o tempo se transforma nas tapeçarias, sobre as quais se fixou, contemplando-as com seu esplendor o frêmito amortecido em olvido, como uma lânguida cabeleira em torno da face clareada de mistério aos olhos nulos, semelhantes ao espelho do visitante despojado de toda significação que não seja presença.
É o sonho puro de uma Meia-Noite, em si desaparecida; e cuja divisada Claridade, que permanece solitária no seio de sua consumação mergulhada na sombra, resume sua esterilidade na palidez de um livro aberto, exposto pela mesa. Página e cenário triviais da Noite, a não ser que ainda subsista o silêncio de uma antiga palavra proferida por ele, no que, ressurgida, essa Meia-Noite evoca sua sombra finda e anulada por estas palavras: "Eu era a hora que me deveria tomar puro".
Morta há muito, uma antiga idéia se contempla como tal, à claridade da quimera na qual agonizou seu sonho e se reconhece no vago gesto imemorial, com o qual se convida paz:a extirpar o antagonismo desse sonho polar, a restituir-se com a claridade quimérica e o texto fechado, ao Caos da sombra abortada e da palavra que absorveu a Meia-Noite.
Inútil, do mobiliário completado que se atolará em trevas, como as tapeçarias já imersas numa forma permanente de sempre, enquanto que, lampejo virtual, produzido pela própria aparição no reflexo da obscuridade, cintila o fogo puro do diamante do relógio; única sobrevivência e jóia da Noite Eterna, a hora se formula nesse eco, no limiar de panos abertos para o seu ato da Noite: "Adeus, noite, que fui teu próprio sepulcro, porém, que, sombra sobrevivênte, se metamorfoseará em Eternidade".

O pseudônimo


Igitur é um elemento-chave de penetração na estética mallarmeana, e também sua angst. O próprio fato de o poeta haver deixado inacabado mostra que não consumou o desligamento dessa experiência fascinante com o texto. É mais uma excitante instigação de tentar enveredar por seu labirinto semântico.
Algumas constantes básicas do mundo de Mallarmé vêm insertas no lgitur: o acaso, o nada, o vazio, o absoluto, a obra, enfim, o sarcedócio do mistério onde se poderia encontrar as únicas possibilidades de tanger, tatear, tocar, tomar os elos entre o Ser (no sentido da essência ou ek-sistência heideggeriana) e a sua perseguida capacidade de apreender e assumir a totalidade do cosmos.
Além do hermetismo contingente, não é fácil classificar Igitur dentro das generalizações consagradas da literatura. Ocultismo, ficção, poesia ou filosofia entranham-se mutuamente; ou essência ou suma teoria para um teatro total, onde vida e arte se conjugam em modulação una, isomórfica? O poeta parou de escrevê-lo quando residia em Avignon, por volta de 1869-70. Em carta a Henri Cazalis, datada de 14/11/1869, dizia: "É um conto, pelo qual quero esmagar o velho monstro da impotência, que é o seu tema, a fim de me encerrar no grande trabalho já reestudado".

Um labirinto de signos

Edmond Bonniot, que em 1925 descobriu o manuscrito, classificou-o como uma prosa muito densa e com as palavras em eco a facilitar o retomo do pensamento sobre ele mesmo.
A palavra Igitur é extraída do capítulo II do texto latino da Gênese: lgitur perfecti sunt coeli et terra et omnis ornatus eorum. E o nome Elbehnon (constante do subtítulo da obra, A Loucura de Elbehnon) provém do hebraico, significando os filhos dos Elohim, potências criadoras emanadas de Jeová. Por aí, já se denota o tema-chave: a potência criadora mergulhada até a loucura diante do desafio da totalidade, ou, no caso mallarmaico, o nada, a pureza, o absoluto, o infinito.
Paul Claudel, em seu artigo, A Catástrofe de Igitur, após considerá-lo "um documento capital", vê "o Hamlet supremo encerrado numa prisão de signos". E, tal como a maioria dos estudiosos de Mallarmé, comprova, em lgitur, o trampolim da concepção de Un Coup De Dés, o poema básico da era moderna. Ou, como diz Guy Delfel, em seu L'Esthétique de Stéphane Mallarmé: "Igitur foi o Werther intelectual de Mallarmé".
"Criei minha obra só por eliminação e toda a verdade adquirida nascia da perda de uma impressão, que, havendo luzido, tinha-se consumido e me permitia, graças às suas trevas descerradas, avançar mais profundamente na sensação das Treyas Absolutas." "A Destruição foi a minha Beatriz", falava assim esse Dante dos tempos modernos, em carta de 17 de maio de 1867 a Eugêne Lefèbure.
A idéia de Baudelaire de que a poesia não é para ser inventada, mas para ser descoberta, quer dizer, o poeta como um decifrador, foi acompanhada por Mallarmé em seu esoterismo. Nesse sentido é que também se compreende, em lgitur, a presença do grimoire (livro de magia). Levantados os panos para a sessão teatral do ato criativo, Wallace Fowlie, um dos melhores intérpretes e analistas de Igitur, diz que as construções do poeta, que são triunfos no jogo do azar, contêm nelas mesmas um elemento de absurdo, porque são monumentos ao vazio e neste último são elaboradas: "Há qualquer coisa de prodigioso e desesperado sobre a aventura intelectual de Mallarmé em lgitur".
Claudel mostra como é significativo haver sido escolhido como pseudónimo (Igitur) um advérbio que, tal qual a conjunção, como figura do discurso, confere à frase (como numa figura de ballet) a sua postura e articulação. O trecho A Meia-Noite, que tentamos verter para nosso idioma, reflete as cintilações da linguagem mallarmaica, a serviço de um dos esforços mais extenuantes de penetrar numa razão superio que não aboliu o mistério.

(republicado no Jornal da Tarde em 23 de janeiro de 1982)

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