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Então, Mallarmé, Igitur

Pode-se chamar "irracionalismo" o esfórço que consiste em recolocar o pensamento em seu eIemento?
Heidegger

O ausentar-se dentro do ser é a essência daquilo que eu denomino o nada. Daí por que o pensamento, por pensar no ser, pensa no nada.
Heidegger

Sôbre as cinzas dos astros, aquelas cinzas indistintas da familia, estava o pobre personagem, deitado, após haver bebido a gota de nada que falta ao mar. (O frasco vazio, loucura, tudo que resta do castelo?) O nada tendo partido, resta o castelo da pureza.
Mallarmé, Igitur.


E, quando eu reabria os olhos, no fundo do espelho, via o personagem de horror, o fantasma de horror, absorver, pouco a pouco, o que restava de sentimento e de dor no espelho, alimentar seu horror com os supremos frêmitos das quimeras e da instabilidade das tapeçarias, e se formar, rarefazendo o· espelho até uma pureza inaudita - até que se destacasse em permanência do espelho absolutamente puro, como tomado em seu frio - até que os móveis, enfim, seus monstros, tendo sucumbido com os seus anéis convulsos, ficassem mortos numa postura isolada e severa, projetando suas linhas sólidas na ausência de atmosfera, os monstros imobilizados em seu último esfôrço, e que as cortinas, não mais inquietas, tombassem numa disposição que deveriam conservar para sempre. - Mallarmé, Igitur.
Igitur é um elemento-chave de penetração na angst mallarmaica. O próprio fato de o poeta haver deixado inacabada, impublicada, essa experiência - não ter consumado o seu desligamento dela, como era a sua atitude com relação a qualquer poema - ajuda, impele a instigação de enfrentar o seu labirinto semântico. Algumas constantes básicas do mundo de Mallarmé vêm insertas no Igitur: o acaso, o nada, o vazio, o absoluto, a obra; enfim o sacerdócio do mistério onde se poderia encontrar as únicas possibilidades de tanger, tatear, tocar, tomar os elos entre o ser (no sentido de essência ou ek-sistência heideggeriana) e a sua perseguida capacidade de apreensão e assunção da totalidade do cosmos.
Além do hermetismo contingente, não é fácil classificar Igitur nas· generalizações consagradas da literatura: poesia? - mas não é versificado; prosa? - mas não se exprime como um conto; ocultismo, ficção e filosofia se entranham·mutuamente; ou essência, ou suma teórica para um Teatro Total, onde vida e arte se conjugam em modulação una, isomórfica? O poeta parou de escrevê-lo quando residia em Avignori, por volta de 1869-70. Em carta a Henry Cazalis, datada de 14 de novembro de 1869, dizia: "é um conto, pelo qual quero esmagar o velho monstro da impotência, que é o seu tema, a fim de me encerrar no grande trabalho já reestudado". Edmond Bonniot, que, em 1925, descobriu o manuscrito, classificou-o como uma prosa muito densa e com as palavras em eco a facultar a volta do pensamento sobre ele mesmo.
A palavra Igitur é extraída do capitulo II do texto latino da Gênese: Igitur perfecti sunt coeli et terra et omnis ornatus eorum. E o nome, Elbehnon, (constante do subtíulo da obra, A Loucura de Elbehnon.), provém do hebraico, significando os filhos dos Elohim, potências criadoras emanadas de Jeová. Por aí já se denota o tema-chave: a potência criadora mergulhada até a loucura diante do desafio da totalidade ou, no caso mallarmaico, o seu sinônimo, o vazio, o nada, a pureza, o absoluto, o infinito. Paul Claudel, em seu artigo, A Catástrofe de Igitur, após considerá-lo um "documento capital", vê o "Hamlet supremo", "encerrado numa prisão de signos". E, como a maioria dos estudiosos de Mallarmé, comprova, em lgitur, o trampolim da concepção de Un Coup De Dés, o poema capital da era moderna. Ou como diz Guy Delfel, em seu L' Esthétique de Stéphane Mallarmé: "Igitur foi o Werther intelectual de Mallarmé".
"Criei minha obra só por eliminação e tôda verdade adquirisa nascia apenas da perda de uma impressão, que, havendo luzido, tinha-se consumido e me permitia, graças às suas trevas descerradas, avançar mais profundamente na sensação das Trevas Absolutas". "A Destruição foi a minha Beatriz", falava assim, esse Dante dos tempo modernos, em carta de 17 de maio de 1867 a Eugène Lefèbure, que era especialmente um egiptólogo, amigo do poeta que o iniciou em alguns aspectos do ocultismo. Pois, aliás, a idéia do Livro da Grande Obra, hantise mallarmaica liga-o diretamente à tentativa dos alquimistas, já não bastassem para.evidenciar essa preocupação as próprias manifestações do poeta a respeito do assunto, em cartas e escritos diversos. Lá estão vários volumes invocados, como um certo Tratado das Pedras Preciosas, ou volume de Eliphas Lévy, Dogmas e Ritual da Alta Magia, além, é claro, das suas leituras de Hegel. Por isso é que Guy Michaud, em Mallarmé, L'Homme et L'Oeuvre, fala na L'attention de Mallarmé sur la valeur et l'importance non seulement du mot en général, mais du nom et de son pouvoir proprement magique sur les âmes. Para o mesmo Michaud, o famoso soneto com as rimas em yx e or (Ses pur ongles trés haut dédiant leur onyx) consiste na ponte para o Igitur, onde a então misteriosa palavra ptyx (mais tarde, graças a Lefebure e sua contribuição através da etimologia grega, indicando a significação de concha) traduzia o apogeu do nada, representada pelo vazio de significado, que, por sua vez, consagrava o mistério. A idéia de Baudelaire: a poesia, não para ser inventada, mas para ser descoberta, isto é, o poeta como um decifrador, foi acompanhada por Mallarmé em seu esoterismo. Nesse sentido é que também se compreende em Igitur a presença do grimoire (livro de magia).
Levantados, assim, os panos para a sessão teatral do ato criativo. Ou isso que Wallace Fowlie, em Mallarmé, designou como documento essencial da mais profunda crise pessoal do poeta. Seu estado podia, na época em que escreveu essa obra, ser medicamente classificado como psicastenia e tôda a ânsia, inclusive no clímax, foi comentada por êle numa carta a Cazalis. Fowlie, que é um dos melhores intérpretes e analistas do Igitur, diz que as construções do poeta, que são triunfos no jôgo do azar, contêm, nelas mesmas, um elemento de absurdo, porque são monumentos ao vazio, neste último são construídos: "há qualquer coisa de prodigioso e desesperado sôbre a aventura intelectual de Mallarmé em Igitur".
Claudel mostra como é significativo que Mallarmé haja escolhido como pseudónimo (Igitur) um advérbio que, tal qual a conjunção como figuras do dicursivo, confere à frase (como numa figura de ballet) a sua atitude e articulação. Deslocamento para o vazio da neutralidade, diante da obra. Igitur, todavia, não é só o en passant da obra de um poeta ainda não superado até hoje, em importância ou estesia. Válido em si, reflete .aquelas cintilações da linguagem mallarmaica, aqui a serviço de um dos esforços mais extenuantes, profundos, de penetração numa razão superior, que não aboliu o mistério. Colocar as palavras-coisas em cena para o teatro filosófico, onde se opera a transmutação alquimica da linguagem poética, do texto, em amálgama de sujeito e objeto. Mais tarde, o poema-base, Un Coup De Dés, desvendaria o fracasso, em sua insuperável elaboração estrutural: “um lance de dados jamais abolirá o acaso". Um livro é um livro e nada mais; poderia-se parafrasear o corvo de
Edgar Allan Poe, êste, aliás, o mestre do mestre da invenção poética.

Correio da Manhã
02/07/1967

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

Sophokles – “Women of trachis”
Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
Jornal do Brasil 01/12/1957

The Letters Of James Joyce
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Erza Pound, crítico
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Correio da Manhã 31/10/1959

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A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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