Coração de Leão na Terceira Cruzada. Acreditava ser o mais bravo dos cavaleiros; acreditava ser amado por todas as damas que conhecia. Era, em decorrência, motivo de zombaria dos companheiros, que, tornando-o objeto de brincadeiras, estimulavam-no em suas paixões ridículas. Porém, com o tempo, sumiram os gozadores e ficou a obra de Piere Vidal. E, no mencionado The Spirit of Romance, Pound atribuiu-lhe o exemplo posterior de Villon: "the verse is real because he lived it" (o verso é verdadeiro porque ele o vivia). No mesmo livro, EP traduziu um trecho da Canção do Respirar, de PV.
O poema
A mascara do velho Vidal que procuramos verter para o português representa uma das mais extravagantes aventuras amorosas daquele jogral. O poema conta como ele corria louco, tal qual um lobo, por causa do seu amor por Loba de Penautier, caçado por homens e matilhas pelas montanhas de Cabaret, Piere, em seu transe alegórico, exalta um encontro felino-amoroso que teria ocorrido nas matas e, depois, lamenta a decadência dos homens, durante a sua velhice, num tempo onde a coragem e o arrojo teriam empalidecido. É – sob certo aspecto - , a voz do próprio Pound, lamentando a sua época de homens fracos e de poesia frouxa.
O interesse de Ezra Pound pela tradição, isto é, restabelecer uma verdadeira tradição do fazer poesia, segundo a sua vizada de uma evolução formativa, era permanente.
Dentro disso, ficaram célebres os seus estudos e traduções da, obra dos trovadores provençais. Em especial, as traduções do trobar clus de Arnaut Daniel, aquele de quem, na Divina Comédia, Dante dizia ser "il miglior fabbro del parlar materno". Um esforço hercúleo de transferir para o ingles as complexas e cerradas estruturas sonoras e as peripécias de uma onomatopéia em função isomórfica.
A tradição dos trovadores era rigorosamente e por excelência a da palavra-forma. Além de seu conhecido ensaio sobre Arnaut Daniel e o breve, mas instigante, Troubadours – their sorts and conditions, Pound dedicou o seu livro, The Spirit of Romance, em grande parte, na análise da formacão, linguagem e psicologia dos trovadores. Mas não só isso; quando afivelava, como poeta, as máscaras das Personae, muitos deles surgiam ressuscitados: poemas "à moda de" Cino Bertrand de Born, Marvoil, Daniel etc.
Vida & Arte
E também Piere Vidal. Vidal & Villon - toda uma linhagem vida x arte - uma linha que chegou reta ao temperamento do mesmo Pound. O que havia de marginal e quixotesco no autor dos Cantares, não deixava de traduzir uma réplica, "out of key with his time", àquele!' cantores medievais.
A biografia de Vidal foi das mais destacadas no que se refere a aventuras ou estroinices. Entre o término do século XII e o princípio do século XIII, pontificaram os seus amores e bravatas. E o que é o principal: a sua poesia, os seus versos furiosamente sacados de uma autobiografia - a sua sina de uma espécie de pré-Quixote. Acompanhou Ricardo.
Pierre Vidal velho
Quando penso nos grandes dias findos
E invoco aquela esplêndida folia,
Salve! Amaldiçoo a minha energia
E ao sol verbero a sua euforia;
Pois aquele que era já morreu
E zomba o rubro sol de minha agonia.
Vejam, me sou Vidal, que era o louco dos loucos!
Rápido e rijo como o rei dos lobos.
Quando os veados fugiam-me entre vidoeiros,
E os jograis cantavam-me nos cancioneiros
E os galgos fugiam e os gamos fugiam
E há muito ninguém mais fugiu.
Até os cães me sabiam e sabiam do medo.
Deus! O sangue da corça esguichava quente
Pelos afiados dentes e lábios purpurinos!
Quente era o sangue, mas não me queimava
Como o escarnio nos lábios da Penautier.
Ah! Ah! São tolos se pensam que o tempo arrefece.
A noite azul lembrada por Vidal.
Deus! Mas a púrpura do céu era profunda!
Clara, funda, translúcida, com as estrelas
Engastadas em cristal; e porque não veio
O meu sono difícil, aos santos saudei
Por aquela insônia - Piere ficou à espreita
Em vigília de louco entre os avezinhos.
Lépida veio a Loba, como um cepo impelido,
Rente, verde e silente no Ródano ondulado.
Verde era o seu manto, cerrado e guarnecido
Por tênue tecido de seda fina
Como névoa onde sua forma branca
Lutava e conquistava. Ah, Deus! conquistava!
Silene veio a amante na noite serena.
Conversas? Fora! Quem fala de amor e palavras?!
Este amor é silente e quente
Como o destino é silente e potente
Até se esmorecer em tudo dar e tomar
Erecto, ardente, triunfante até morrer.
Deus! Ela era branca, esbelta como laje
Lavrada em mármore; e o sopro arquejado
Cessou enfim. Então aguardei e extrai
Seminua, e depois nua, da bainha de açafrão
Extrai de todo esta adaga que lateja aqui.
Aí ela acordou e zombou do pobre estrôina.
Ah, Deus, a Loba! a minha única amante.
Foi sua carne, alguma vez, feita ou não-feita?
Deus maldiga os anos que encanecem tais mulheres!
Olhem cá, este Vidal, que foi caçado, esfolado,
Desonrado, mas não se dobrou e, no fim, venceu.
E amaldiçoo o sol em sua rubra euforia,
Eu que conheci vales, ribeiras, videiras,
Pátios, e toda a disparada pela mata,
Naquela imensa folia, mirem-me enrugado
Como um velho tronco de carvalho,
Zombado em minha pútrida nostalgia.
Nenhum homem ouviu a glória dos meus dias;
Nenhum homem ousou e venceu na ousadia; ·
A noite, o corpo e o amálgama de uma flama!
O que possuis, mesquinhos, que faça ganhar
Esta glória terrena? Ou quem ganhará
Tal galardão de guerra com sua "grande proeza"?
O tempo de indolência! O êmulos imberbes
Que disfarçam paixões e desejam desejos.
Vêem-me enrugado, em seu escárnio dos escárnios;
Mas desprezo-os pelas chamas poderosas
Que me reduziram a estas cinzas
Ah, Cabaret! Ah, Cabaret! De novo tuas Colinas!
Tirem suas mãos de mim!... Farejando o ar
Ah! Este odor é quente.
Correio da Manhã
20/11/1972