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O ritmo encantatório de Rosa

E não é a rosa de Rilke
Nem aquela outra de Ronsard
Somente rosa rosa rosa
("a rose is a rose is a rose" G.S.)
Sempre João Guimarães Rosa
Rosa da prosa onde rocia
A alegria da poesia.

Nonada? Foi tudo. A primeira vez em que me encontrei com Guimarães Rosa foi no Palácio do Itamarati, aqui no Rio. Atravessei a Divisão de Fronteiras -um salão cheio de mapas- e lá estava ele ao fundo, sorrindo com sua gravata borboleta. Saudações. Nem sabia que era o chefe daquela divisão, mas lá pairava como peixe dentro d'água. Pegou meu primeiro livro de poemas que lhe trouxera e logo começou a recitar um trecho, dizendo (generosamente, vamos crer): "Que coisa linda!". Não sabia como me coçar, sem jeito, sem gestos, contemplando um conselheiro sentado diante de sua mesa -imóvel, estático, simpático- obrigado a escutar os meus "achados".
A partir de então, foram encontros mais ou menos regulares. Começou a relatar o seu universo de ações pré-criativas. O balaio. Sim: havia um balaio. Por exemplo: vinha num ônibus, num táxi, num lotação, a pé, brotava-lhe da imaginação uma frase, uma imagem, uma metáfora, pegava um papel de dentro do bolso, escrevia, registrava o que viera à cabeça e, chegando em casa, atirava o papel (ou papéis) no balaio. Este ia ficando cheio. Decorrido algum tempo, na hora de fazer prosa ou poesia, recorria ao mesmo balaio.
Um dia cheguei lá no Itamarati e encontrei Rosa corrigindo a tradução francesa de seu conto "A Terceira Margem do Rio". Fantástico. Todas as passagens ou palavras que mudava, em francês, eram bem mais eficazes e funcionais. Virou-se pra mim e disse: "Eu não sei todas as línguas, mas procuro saber a gramática de todas elas". Porfiava pela aura do significante. Tinha a sua vaidade positiva. Auto-respeito. Um dia encontrei-o assim entusiasmado com o ensaio "O Lance de Dês do Grande Sertão", que Augusto de Campos havia publicado na "Revista do Livro", do MEC, então editada por um belo escritor e amigo comum: Alexandre Eulálio (Pimenta da Cunha). O mesmo Alexandre que, algum tempo antes, havia lançado nessa revista um ensaio meu sobre poesia concreta que causou certo escândalo.
A última vez em que estivemos juntos íamos num ônibus, a caminho de um restaurante, e perguntei-lhe: "O que está fazendo?". Respondeu, seco e melancólico: "Estou vazio". Lembrei-me do baú e então perguntei a mim mesmo: "Será que também está vazio?". Nada nisso de humor negro, de ironia -também melancolia. Depois, foi a eleição e a sempre adiada posse na Academia -a morte súbita.
Que podia eu fazer? Um artigo de página inteira no finado "Correio da Manhã": "Rosa da Prosa". Não sabia de "Magma". Sabia de "Sagarana", "Corpo de Baile" e do fabuloso "Grande Sertão: Veredas". Além de um ou outro escrito. Mas a prosa de Rosa também já era poesia, no momento em que o leitor pára no ritmo encantatório das palavras. Do mallarmaico "aragem do sagrado, absolutas estrelas", passando pela trepidação telúrica de "o diabo na rua no meio do redemunho" até a gaze oriental de "Diadorim do meu amor, põe o teu pézinho em cera branca que eu rastreio a flor de tuas passadas". Ou as poderosas aliterações: "mire e admire". Certo: é o Sertão.
"Magma". Com ilustrações de Poty, com uma nota editorial a relembrar a "sobrevivência do mais apto" e com o parecer enfático de Guilherme de Almeida, que deu, em 1936, o primeiro prêmio do concurso de poesia da ABI, assim, afinal, chega ao público o livro inicial de Guimarães Rosa.
"Magma" não tem a estatura do "Grande Sertão" e outras das principais obras de seu autor -não esquecendo o notável "Tio Iauaretê", em que a metalinguagem pousada na primeira pessoa do singular remete, por evidente analogia, ao aparentemente heterogêneo "Assassinato de Roger Ackroyd", de Agatha Christie.
Mas é importante e lá estão as imagens e metáforas roseanas: "Onde o sol se refrata em agulhas frias"; "bolhas espumejam como opalas ocas"; "o orvalho sonha nas placas de folhagem"; "vôo de cantáridas tontas no hálito de incenso de uma nave fenestrada de ogivas e ventanas e toda colorida de vitrais..."; "nelumbos azuis, nenúfares rubros e ninféias alvas. Um lençol de garças se abriu por sobre o poço"; "onde uma aranha de vidro esperneia pendurada de um fio de sol molhado"; "o monte, agachado e cinzento é um elefante de pedra"; ou este haicai ("Imensidão"): "Cheiro salgado/ de um cavalo suado./ Quem galopa no mar?". Bastam estes exemplos a fim de não pairar dúvida sobre aquela poderosa tendência de Guimarães Rosa para a fanopéia -neste livro inaugural também sob a influência da poesia oriental.
Mas existe a ser observada, paralelamente, uma estrutura de miniconto, de narrativa, enfim, de "estória" realizada com sucesso em peças como "Ritmos Selvagens", "Hierograma" ou "A Terrível Parábola". No breve "Música de Schubert", extesia verbal em duplo contraponto: "Sombras de amores/ em bailado longínquo, num palco sem fundo/ como um fundo de espelho...". Um rápido exame da técnica mostrará um alexandrino entre um verso de quatro sílabas e outro de seis. Estes se completam, enquanto o longo, no meio, prolonga descritivamente o efeito da metáfora ("sombras de amores como um fundo de espelho") a fim de reforçar a idéia de infinito nos dois momentos diversamente semânticos da palavra "fundo".
Enfim, o poema que encerra o livro -"Consciência Cósmica"-, retomando em parte o tema acima citado de Daniel-Rops, deslancha a filosofia do saber do distanciamento: "Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,/ a dança das espadas de todos os momentos./ E deveria rir, se me restasse o riso,/ das tormentas que pouparam as furnas da minha alma,/ dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...". "Magma" marca esse início de uma trajetória já hoje histórica. Travessia. 

Folha de S.Paulo
14/09/1997

 
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