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Trinta anos depois, rastro de Faustino ainda ilumina

A morte espacial que me ilumina

Essa epígrafe acima - verso do poema "Sinto que o mês presente me assassina"- bem reflete o signo de Mário Faustino: um ser com as suas permanentes premonições da morte (o que se pode comprovar através de muitos relances ou trechos de sua obra) e chegando a seu fim especialmente iluminado (no ar, no avião), depois de uma trajetória curta no tempo, porém intensa, vibrante, brilhante, polarizante.
Passagem literária breve em nosso âmbito nacional - menor do que a de um Rimbaud. No entanto, inexoravelmente histórica. Senão, vejamos. Nasceu em Teresina, Piauí, em 22 de outubro de 1930. Teve 19 irmãos. Em 1940, mudou-se para Belém do Pará. Em 1946, já entrava no jornalismo ("A Província do' Pará") e, em 1949, foi para a "Folha do Norte", cuja redação dirigiu. Neste mesmo jornal, em 1947, publicou seus primeiros poemas e traduções. 1951: viagem pelos Estados Unidos. Lança o seu primeiro livro de poemas, "O Homem e Sua Hora", em 1955. No ano seguinte -1956 - instala-se no Rio, como professor de vários cursos da Escola de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas. Foi aí que fizemos amizade; mas voltarei a isso.
Em 23 de setembro de 1956, no "Jornal do Brasil", inicia a publicação semanal de sua famosa página, "Poesia-Experiência", que durou até 1º de novembro de 1958. Em fevereiro de 1959, vai para o quadro do redatores do "JB" e, em dezembro do mesmo ano, parte para os EUA, onde trabalha na ONU até junho de 1962, quando então retorna ao Brasil e se reincorpora ao ''JB'', como editorialista, e também aqui continuando na ONU, como diretor- adjunto de seu Centro de Informações. Também foi editor-geral da "Tribuna da Imprensa"; mas numa experiência que durou uma semana ou algo mais.
27 de novembro de 1962: sai do Rio de Janeiro para o México, mas o avião em que está, quando principia a escala em Lima, Peru, choca-se com a montanha, com o Cerro de la Cruz. Segundo a revista "Manchete", em reportagem da época, um erro de três graus gera 97 vítimas: entre elas, Mário; aos 32 anos. Na noite desse mesmo dia, estava no arquivo da redação do “Correio da Manhã", quando surge Moniz Vianna me dando a notícia. Vamos, então, retornar a 1956.
"Fiash-back". Pelo começo do ano, eu, que também era funcionário da FGV, venho andando por um corredor quando, na sala contígua à minha; através da porta aberta, vejo aquele camarada, que, às vezes, cumprimentava ligeiramente, teclando a máquina de escrever numa velocidade profissional. Entro e pergunto se vinha do Pará e, com a resposta afirmativa, pergunto se conhecia o Mário Faustino (eu já havia lido "O Homem e Sua Hora"). Rindo, diz que é ele o próprio.
Daí em diante, iniciou-se uma amizade do dia-a-dia. Conversamos sobre inúmeros assuntos: literatura, música, artes visuais, cinema, política etc. Mário ia seguidamente almoçar na minha casa, que ficava a uns dez minutos a pé da Fundação, bastando andar um pouco e atravessar o corte da rua Farani. A fraternidade era grande - ele revelava e teorizava a respeito de sua vida homossexual. Ou melhor, também grega: bissexual. Um dia, por exemplo - tempos depois -, andando pela proverbial Farani, relatava-me seu fim-de-semana, em Porto Alegre, aonde fora fazer conferência sobre poesia. Estava de olho num tenente louro, mas como este último nada percebia, acabou na cama com uma estudante. Disse-me, em conclusão: "Vocês, no amor, têm a metade do mundo; eu tenho o mundo inteiro''.
Foi nessa toada que publicou, no "Correio da Manhã", um poema, cujo título celebrava sua data de aniversário: "22-10-56". Causou escândalo e reboliço, quando soltava versos como estes: "Castra, castra, acampamentos ergo e queimo/ Suscitando soldados sobre mim/ e ao peito mercenários soldo e pago/ e apago quanto amor me sobe o monte/ em jumento montado/ ou de cruz carregado".
Um mês antes de tal data, em 23 de setembro, havia lançado a sua página, "Poesia-Experiência", no "Jornal do Brasil". Reinaldo Jardim era o novo diretor do suplemento e o havia convidado para isso. A página tinha uma seção, "O Poeta Novo", e o primeiro a ser apresentado foi eu, com um soneto, "O Albatroz", seguido de comentários elogiosos de Mário. Além de mim, ele indicou a Reinaldo (poeta e o verdadeiro iniciador da revolução gráfica e visual do "JB") os nomes de Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Ferreira Gullar, Oliveira Bastos, Benedito Nunes e outros.
Polêmico e ainda o grande divulgador do movimento de poesia concreta, o suplemento fez fervilhar os meios literários e culturais do país. E Mário, com sua página e mais um ou outro poema ou tradução que publicava fora dela, a estrela mais permanente. Incansável na divulgação de autores antigos ou modernos, que julgasse importantes, no lançamento de poetas jovens, nas versões de diversas línguas para o português, nos artigos em que desmontava a obra de vates até então sempre saudados pelo solenes elos do elogio, na colocação de autores mais velhos e consagrados no seu devido lugar. Era o mais poundiano de nós outros poundianos (Augusto, Haroldo, Décio e este que vos fala), com a crítica pragmática, da amostragem como a das lâminas do biólogo, do ir direto ao inseto.
Quanto à poesia concreta, embora jamais tivesse aderido ao movimento como criador, sempre manifestou seu apoio, fosse mediante artigos ou divulgação de textos teóricos. Reconhecia plenamente o valor cultural da PC, no tocante aos escritos que reforçavam a justificação e a doutrina da vanguarda daquele momento. Até mesmo alguns de seus poemas refletiam, no detalhe, e fosse na variação tipográfica ou na especialização, os efeitos do concretismo. Exemplos aparecem em peças como o já citado "22-10-56", ''Ariazul'', ''Cavossonante Escudo Nosso" ou no antológico "Soneto 1", destrançado e destraçado no espaço com o
"amo r
amor
amora
morte
r amo",
ou seja, um dos diversos decassílabos desmembrados no branco da página.
Era, até coerente pelo seu amor ao teatro, um excelente declamador no sentido moderno (uma espécie de Dylan Thomas daqui), com uma voz musical, bom ritmo e noção de pausas. Em 1962 deixou gravados em fita de rolo lá na minha casa, quatro poemas: o "Envoi" (trecho do "Mauberley", de Pound), "O Monstrengo" e "Todas as Cartas de Amor" (esta, imitando o sotaque luso), de Fernando Pessoa e "Les Corbeaux" (Os Corvos), de Rimbaud. Carlos Heitor Cony, numa bela crônica, "O Poeta e Sua Voz", relembra a noite em que ouviu a fita. Repete: "O monstrengo que está no fim do mar/ Na noite de breu ergueu-se a voar"; e comenta: "O silêncio explode em nossas nucas e vergamos cada vez mais, à espera do que a fita acabe e tudo volte a ser como antes. Mário, presença física que se toca e que mutila nossas nucas, volta à noite de breu do poema e nos deixa tranquilos e sofridos".
Um homem, um poeta, interessado por tudo: pela estética, pela vivência, pela participação política. Numa carta que me enviou, em 29 de março de 1960, assim se manifestava: "Estou feliz, trabalhando muito, lendo muito (pela primeira vez em três anos), escrevendo bastante. Meu longo poema tem avançado bastante e pareço ter dominado o tipo de linguagem que me interessa: clara, funda, orgânica e eficiente ao mesmo tempo... Tudo vai bem por aqui, em suma - mas conto os dias que me separam da volta. Esse Brasil-Macunaíma, barroco e louco, cada vez mais me atrai. Daqui desta distância caminho cada vez mais para a esquerda (felizmente não a esquerda stalinizante) e vejo que o caminho do Brasil tão grande amado é a neutralidade socialista'' .
Depois de sua morte foram produzidos quatro livros, a saber: 1 - Na série Coletânea, a Editora GRD, sob n° 2, "Cinco Ensaios Sobre Poesia de Mário Faustino" com apresentação de Assis Brasil, em 1964; 2 - "Poesia de Mário Faustino”, Editora Civilização Brasileira, 1966; 3 - "Poesia-Experiência'', na coleção Debates da Editora Perspectiva, com introdução de Benedito Nunes (talvez o mais antigo amigo de Mário, vivo), em 1976; 4 - "Mário Faustino - Poesia Completa e Traduzida", da Editora Max Limonad - introdução, organização e notas de Benedito Nunes em 1985.
"Nasce do solo sono um sobressalto" - é Mário, o grande "verse maker"; ele, que tantas "touchstones" (pedras de toque) procurou na poesia em torno do mundo e dos idiomas, também concretizava as suas. Naquela grande tradição da dicção elisabetana e que desembocou nos modernos, principalmente em Dylan
Thomas.
Agora, são 30 anos decorridos daquele estouro no Cerro. Ficou o rastro do espírito que ilumina.

Folha de S.Paulo
06/12/1992

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

Sophokles – “Women of trachis”
Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
Jornal do Brasil 01/12/1957

The Letters Of James Joyce
Jornal do Brasil 12/01/1958

O poema em foco – V / Ezra Pound: Lamento do Guarda da Fronteira
Correio da Manhã 05/10/1958

Erza Pound, crítico
Correio da Manhã 11/04/1959

Uma nova estrutura
Correio da Manhã 31/10/1959

"Revista do Livro", nº 16, Ano IV, dezembro de 1959
Tribuna da Imprensa 13/02/1960

E. E. Cwnmings em Português
Tribuna da Imprensa 04/06/1960

O último livro de Cabral: “Quaderna”
Tribuna da Imprensa 06/08/1960

Cinema e Literatura
Correio da Manhã 07/10/1961

Um poeta esquecido
Correio da Manhã 24/03/1962

A Grande Tradição Metafísica
Correio da Manhã 05/05/1962

Reta, direto e concreto
Correio da Manhã 06/06/1962

A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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