Hélcio deu uma saída, à noite, até o bar da esquina, para comprar cigarros e tomar um cafézinho. Na volta, quando se acercava da portaria do prédio, foi surpreendido por uma voz feminina atrás de si: "meu amor! meu amor!". Girou de pronto e deparou-se com uma figura bizarríssima: um rapaz esguio, com cabeleira polvilhada de verde, camisinha sem gola, de ban-lon amarelo, calças de veludo roxo, sandálias franciscanas - puxava, por coleira fina, uma imensa tartaruga. "Dê o fora, maricas!" berrou e, ato contínuo, fêz menção de agredi-lo. O vulto esguio sumiu na esquina, com a tartaruga no colo.
No dia seguinte, após afiar a musculatura com os halteres, tomou banho e café com leite, deu um beijo na mulher de avental e nos dois guris e entrou no ônibus, rumo à repartição. Lá chegando, foi logo contando o caso aos colegas. Alarido da gozação - gargalhadas: "ora, ora" ou "é o maior!" ou "está apaixonado". Pretexto também, para as anedotas pornográficas de praxe.
Quando voltava para casa, já no escuro, havia esquecido o episódio. Mas eis que, perto do local anterior, emerge das trevas a mesma figura, exclamando: "meu amor! meu amor!" Disparou atrás do sujeito, mas em vão – o outro corria muito e, além disso, Hélcio estava com medo do escândalo. Dormiu, acordou, saiu, porém dessa vez, lá no trabalho, achou de bom alvitre nada comentar com os colegas.
O fato, no entanto, continuou a se repetir quase todos os dias em vários lugares. Um dia, foi abordado na padaria, quando estava acompanhado da família. Ficou traumatizado. Pior ainda: passou a sonhar diariamente com o rapaz da tartaruga, com uma cena quase infalível: ele prêso à cama, incapaz de movimentos, e o outro avançando em sua direção, implacável. Acordava gritando, com gestos bruscos, suando, assustando a mulher, que ora rezava ora também gritava.
Decorridas cêrca de três semanas, o rapaz sumiu, mas os sonhos, agora, continuavam incessantes. Tinha mêdo de dormir, estourava-se com os estimulantes, tombava no leito e lá vinha, infalível, o sonho. Reuniu as economias e passou a freqüentar o psicanalista. Depois de ouvir o caso, o doutor disse: "elementar, meu caro Hélcio". "Como elementar, doutor? Sempre tive uma vida tranqüila - não sou neurótico, intelectual, artista ou assessor de ministro". "Trata-se de uma fixação de infância que jorrou, irresistível, do seu subconsciente". "Mas, doutor!!" "Consulte o seu passado, a sua própria consciência".
Consultou e descobriu a si próprio. Deixou de sonhar, mas passou a procurar incansavelmente pelo rapaz, em bares, buates, no bas-fond. Certa madrugada encontrou-o, à beira do meio-fio, trajado como da 1ª vez. Abraçou-o, sacou da pistola, atirou dentro da bôca dêle, depois dentro da sua. Dois cadáveres untados de sangue, com a tartaruga, ao lado, velando.
Correio da Manhã
25/04/1969