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Xerloque da Silva

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Crime numa nota só

Nem quatro comprimidos de tranquilizante livraram-no de uma noite em claro, varada por crise de ciúme e aquela sensação densa que dá o complexo de inferioridade. Levantou-se, olhou para o relógio de pulso na mesa de cabeceira, que marcava seis e pouco, e entrou no banheiro. De novo no quarto, vinte minutos depois, enfiou as bermudas, vestiou uma camisa sem gola, colheu com os próprio pés as sandálias japonêsas e foi pra rua, carregando uma sacola. Entrou na ótica da esquina, pediu à moça de avental branco um par de óculos escuros, polaroid, pagou, experimentou, ajustou bem e saiu. Por detrás dos óculos sentia-se outro, uma espécie de dono desconhecido do mundo. Reentrou em seu prédio, foi à garagem, sentou-se no fusca pérola, pôs a sacola ao lado e partiu direto para a rua da ex-namorada. Parou em frente ao portão da casa dela, abriu a sacola, pegou o revólver e ajustou o silenciador. Como previa, não esperou muito: a mulher aparece no portão, algo apressada no uniforme de aeromoça. Com o pé no acelerador, mirou e atirou, atirou: uma bala em cada seio. Dez segundos após, o fusca já dobrara outra rua também deserta. Retornou ao apartamento, tomou novo banho e, então, vestiu o terno para ir à repartição. Tirou a arma com silenciador da sacola e colocou-a dentro da pasta de processos. Agora tomou um táxi e saltou em frente ao bloco oposto do edifício da repartição. Foi, de elevador até o último andar e subiu o lance de escadas que dava para o terraço que unia os dois blocos do prédio. Desceu pelos degraus, já do outro lado, e, em lugar de tomar o elevador, continuou mais dois andares abaixo, até chegar ao grupo de salas onde trabalhava. O pessoal da limpeza já fora embora e, como de hábito, ninguém ainda chegara. Foi direto para o gabinete do chefe, após ter aberto a porta de entrada com a sua chave pessoal. Lá aguardou, como sabia, pouco mais de uma hora, folheando processos, enxugando com o lenço, vez por outra, o sour que lhe brotava da testa. Quando o chefe chegou, abrindo a boca ao vê-lo, engoliu um disparo seco. Fechou a porta e saiu pelo bloco oposto, repetindo o mesmo trajeto. Almoçou no restaurante de sempre, com o garçom de sempre. A seguir, entrou num cinema e lá permaneceu a sessão inteira. Passou no clube, deixou a pasta no escaninha do vestiário e ficou cerca de uma hora na piscina, onde tornou alguns drinques. Jantou na casa de sua m ãe, e voltou para o apartamento, tirou a roupa, pôs a calça de pijama e se deitou. Deixara um aviso, espetado na porta, do lado de fora: "Hoje passo a ter meus sonos sem sonhos, solenemente sem som - sou só."

Correio da Manhã
22/01/1969

 
Fiscal fisgado
Correio da Manhã 14/01/1969

A mesma ilha
Correio da Manhã 15/01/1969

Bonnie sem Clyde
Correio da Manhã 16/01/1969

Imersão geral
Correio da Manhã 17/01/1969

Sinuca sangrenta
Correio da Manhã 18/01/1969

O homem-fome
Correio da Manhã 19/01/1969

Crime numa nota só
Correio da Manhã 22/01/1969

A receita do seu Zezé
Correio da Manhã 23/01/1969

A luta conjugal
Correio da Manhã 24/01/1969

O mistério do professor vermelho
Correio da Manhã 25/01/1969

Teatro Leve
Correio da Manhã 26/01/1969

O transplante
Correio da Manhã 28/01/1969

Idem idem
Correio da Manhã 29/01/1969

Cadê Zizi
Correio da Manhã 01/02/1969

Barulhinhos
Correio da Manhã 02/02/1969

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