Piolhinho era uma bola. Baixo, balofo, pele pálida, rosto horrendo, unhas sujas, dentadura cariada, idade inidentificável. Além de tudo era duro, daqueles de virar para baixo e não cair nada. Sempre no bom humor, calcado sonoramente em riso soluçante. Sustentado pela avó.
Mas Piolhinho era uma bola. Na roda do bate-papo, no bar da esquina, impressionava a turma com os seus "bafos". Era o maior "bafo" - "bafo” de Dom Juan, mulheres, só mulheres, de tôdas as idades. Dizia que conquistava tôdas, que já rolara nos lençóis com tôdas. "Mas como? Com que cara? Com que roupa?", duvidavam todos. Mas não se irritavam; pelo contrário, achavam graça, quando passava uma boazuda ou uma grã-fina dos arredores, em ouvi-lo comentar: "Já foi minha" ou "está louca por mim" ou "não vale a pena"; sem falar nas convulsões verbais obscenas e fesceninas a atacarem-no. Gargalhadas. E a turma imaginava o grotesco da situação: "Vejam só, a Maria Matilde, essa loura rica, que é cobiçada da cidadee inteira, linda e linda, agarrada com Piolhinho." "Há! Há! Há!"
Mas, certo dia, na bôca da bica, curvado dentro do bar, ele se excedeu. Descurvou-se, enxugou os beiços com o dorso da mão e disse: "Essa chata da dona Nilza quer que eu vá, de nôvo, passar a noite com ela, ora, uma vez basta e basta; enfim, vou lá." Não era possível tanta desfaçatez! Dona Nilza era, nada mais, nada menos, mulher honrada e inexpugnável do grande industrial, belíssima e fisicamente impecável em seus 40 anos, morava na imensa mansão de outra esquina lá perto. Piolhinho, impertubável, concluiu: "Por isso, pessoal, tenho de ir andando, vou jantar para, depois, chegar lá pelas oito e meia, ciao, ciao". Saiu saltitante, fulgurante, confiante.
Essa não! O pessoal decidiu a dar-se ao trabalho de seguir Piolhinho. "Garanto que nem vai sair de casa", disse um. Porém, às oito e quinze, de dentro de um taxi Chevrolet prêto, alugado, já viam-no sair, a pé, assoviando, rumo à mansão. Lá, tocou a campainha e, estranho! O mordomo, ao abrir a porta, piscara-lhe o ôlho. Entraram furtivamente e plantaram-se, após armarem uma escada ambulante, na varanda do quarto dela. Nilza, de peignoir rosa rendado, aguardavana postura épica de adúltera em transe. Entra Piolhinho (bôcas abrindo-se em pânico velado) e grita: "Shazam!" Transformara-se num ser alto, lindo, alourado, com cara de Peter O'TooLe, já caindo no regaço de Nilza. O resto foi fácil.
Todos da turma, fechados em casa, tentaram sem êxito a experiência com a palavra mágica. E, no dia seguinte, quanclo Piolhinho apareceu, já não o procuravam para dar o gôzo. "Amanhã, pego Madame Lili'', comentou galhofeiro. Parecia estar surprêso porque ninguém ria. De repente, um dêles, no estrépito da fúria, deu-lhe um pontapé. Sinal de desrecalque: pularam em cima do homúnculo a murros e pernadas: "Diga shazam! Diga! Queremos ver!" Mais pontapés com êle cuspindo sangue, de cócoras. "Vamos!" Ainda disse: "Não posso, é uma palavra de amor!" Nova saraivada de pancadas. Agonizava. Depois, já morto, atiraram-no, castrado, num terreno baldio, no lixo, entre as varjeiras.
Correio da Manhã
03/06/1969