O diretor do teatro estava lendo os jornais, com os pés espichados sôbre a mesa, quando o contínuo anunciou-lhe: "Dr. Brício Bricioli quer falar com o senhor". "Quem é êste cara?" "Alega ser empresário internacional de bale clássico". "Entre, que entre, vamos ver o que quer". Surgiu um homem de nariz adunco, bigodinho com pontas reviradas para o alto e gravata borboleta. "Qual é o seu caso?” "Meu caso? ora, meu senhor, dar-lhe a oportunidade de tirar o nome do teatro da lama", "O que é que se pode fazer? A falta de talento anda crônica e os artistas estrangeiros só recebem em dólar puxadíssimo". "Pois a preço camarada trago-lhe a chance de soerguer esta casa, mediante uma execução do Espectro da Rosa, com o famoso Trifunis". "O senhor está doido? Na verdade, desde o Nijinski, não tem graça ver o assunto dançado por ninguém; aliás, nem sei quem é êsse Trifunis". "Permita-lhe dizer que está por fora" - puxou da pasta recortes de jornais da Venezuela, Honduras, Guatemala e Guiana Holandesa: -"Veja o noticiário, as fotos e os comentários"; O negócio era, realmente, ultra-encomiástico, alguns críticos diziam mesmo que o homem era o nôvo Nijinski, talvez ainda melhor, seu pulo era inacreditável. "Mas quantos milhões quer o homem?" "Aí está, muito menos do que pensa, êle tem amor à arte, basta dois milhões para êle, enquanto nós dividiremos a receita das entradas, pelas quais o senhor cobrará os olhos da cara". "Genial! Amanhã mesmo pode iniciar os ensaios, enquanto já vou hoje tratando da publicidade".
No dia seguinte, o diretor chegou no teatro, à hora do ensaio. Lá estava o empresário prá-la-prá·cá: então aproximou-se e indagou: "Quem é aquêle sujeito balofo ali no palco?" "Ora, é o Trifunis". "O senhor está brincando, como é que êle dança com tal corpanzil?" "Aí é que está, o público, hoje em dia, não acredita em physique du rôle; aliás, nem êle precisa saber pular". "Meu Deus!" "Veja aqui, a famosa entrada do espectro será propiciada por êste trampolim enquanto, naquele, círculo desenhado no tablado, adaptamos uma sequência de molas sob os tacos que o farão elevar-se naqueles ballons que glorificaram Nijinski". "Mas isto é uma farsa!" "O teatro é farsa - o senhor vai desistir?" "Agora, não posso mais, mas espero que tudo dê certo". "Vai ser fabuloso".
Estréia - teatro lotado - gente dependurada nas cortinas - claque enfileirada. A môça entra, solta a flor, os primeiros acordes da valsa de Weber, ela dorme, vai entrar o espectro: frisson geral. Mas o trampolim foi elástico demais: o gorducho projetou-se pela janela, derrubou o lustre, roçou violentamente no teto e caiu do outro lado dos bastidores sôbre uma tina de água suja de tinta e, logo, emitiu vasto palavrão.
A bailarina deu um pulo do sono convencional. A ela que tentou aplaudir e foi massacrada por um grupo de estudantes. As vaias ressoavam. Outros gritavam em côro: "Quero meu dinheiro". O diretor tentou ir ao palco explicar-se e levou, logo, uma guarda-chuvada. Perseguido por espectadores já em plena rua, Trifunis, lambuzado de tinta, deu o seu primeiro salto da vida: projetou-se no espaço, sôbre uma pôça d'água e agarrou-se a um ônibus em movimento. Populares aplaudiram o arrôjo que o seu mêdo lhe deu.
Correio da Manhã
25/05/1969