Estava ali, na Avenida Rio Branco, em frente ao Edifício S. Borja, quando, iluminado, virou-se para o chão e deu uma ligeira cuspidela. Parou e ficou olhando para baixo. Logo em seguida, um rapazola, entregador de encomendas de escritório, parou a seu lado e ficou também olhando pro chão. Acercou-se um mitra pedestre. A seguir, o guardador de carros abandonou a vigilânda e também veio eravar a vista no solo. Um senador, que saía do Monroe, ao verificar o ajuntamento, atravessou a rua e, célere, grudou-se ao grupo. Ali já estavam também duas mulheres cheias de embrulhos, enquanto funcionários de uma companhia de aviação saíam do escritório e se aproximaram. Dois minutos depois, as pessoas retardatárias já trepavam no ombro dos privilegiados, procurando o espetáculo.
Saiu tranquilamente do bôlo, atravessou a rua e, no meio da Feira do Livro, emitiu outra cuspidela e ficou olhando pro chão. Decorridos dois ou três minutos, passantes, fregueses e barraqueiros estavam embolados, olhando. Saiu novamente e repetiu a dose defronte do Clube Naval. Repetiu-se o fenômeno. Em frente ao Edifício Marquês de Herval, novamente o lance da cuspidela. E, dai por diante, em frente ao Edifício Avenida Central, na esquina da Rua da Assembléia, no prédio da Associação dos Empregados do Comércio, e em tôdas as esquinas, até atingir a Praça Mauá. Paralisada a Avenida Rio Branco; e os veículos pareciam estátuas fumegantes e buzinantes no engarratamento geral. As repartições públicas encerrararn seus expedientes. O comércio começou a fechar as portas. Camelôs brotaram do chão, vendendo giletes, cigarros, perfumes. Nas janelas de andares altos, pessoas se debruçando, tentando enxergar, algumas assestavam binóculos. Mas, a massa era compacta.
Súbito, sirenas, choques da polícia - mas os carros não podiam entrar na avenida por nenhum dos lados. Os policiais, fardados e armados, ou à paisana, acercavam-se dos grupos e principiaram a olhar também. Enfim, as autoridades tiveram uma idéia: cercar por todos os lados a saída da avenida, a fim de que se averiguasse o que havia. Ninguém arredando pé.
Chegou em casa, com a bôca seca de tanto cuspir. Foi até a geladeira e sorveu um copo d'água, depois um refrigerante. Tirou a roupa, enfiou o pijama, voltou à geladeira, tirou gelo, pôs no balde, pegou um copo longo e um pacote de amendoim, trouxe a garrafa de uísque, ligou a TV e sentou-se em frente. As câmaras já circulavam pela Rio Branco, repórteres-volantes faziam entrevistas tonitruantes. Horas depois, em pleno pileque, cantava e dançava em volta da TV. No vídeo, um locutor anunciava que "algo de muito sério estava acontecendo na cidade". Gargalhou: meia-noite e a avenida lotada, imóvel de gente e veículos. Estoura um toró: ninguém se move. Gargalhou algo tonto, caiu no tapête em espasmos.
Acordou no dia seguinte, virou-se, a TV registrava a mesma multidão. Um profeta de barba anunciava ao repórter a aparição de algum nôvo Deus: “Sou eu! Sou eu!” gritou em holocausto, abraçando-se a garrafa.
Correio da Manhã
14/05/1969