Alta madrugada. O foguinho dentro da tenda dos operários, à beira da estrada, tremulou forte e quase se apagou quando o mustang conversível passou, veloz rente ao meio-fio. Logo depois, o relinchar de uma freada e duas cabeças emergiram da tenda olhando adiante.
Um início de dia nôvo já se divisava lá ao longe. Barra da Tijuca. A mulher de prêto vergou-se sôbre a direção do carro. O homem, ao lado, acendeu um cigarro e tragou fundo. Quietude. Depois de duas baforadas, tentou reencetar o diálogo: "Rosália, você está muito nervosa, está dirigindo seu carro como doida". Ela começou a soluçar. "Rosália, Rosália, ouve". Voltou-se para êle, com o rosto transfigurado: "Ouvir? ouvir ainda mais o que?" "O que eu estou pedindo é um esfôrço de lucidez, de bom senso." Ela jogou o corpo para trás e ficou, vagamente, fitando o céu: "Inútil, não posso mais me esforçar, além disso, ninguém me compreende, ninguém gosta de mim: e têm razão, eu zou o fim da picada.” O homem, delicadamente, tentou continuar na persuasão: "ora meu bem, não é nada disso, você está imaginando coisas – muita gente gosta de você, a começar por mim". "Você? você? você é blasé, frio, a sua proteção é muito relativa." "Escuta Rosália, não vê o absurdo? não ,vê que você, bonita, com dinheiro e inteligência, não pode desperdiçar tudo que tem nessa autodestruição?" "Sim, já sei o que você quer dizer: sim, sou neurótica; e daí? nenhum psicanalista me curou, desisti". Procurou abraçá-la: "mas é você que precisa se curar, a solução está dentro de você". ''Ah, você é um noivo ingênuo - essa mesma carinha de ingênuo que fica girando entre as quadras do Country; aliás se você não me serve, ninguém deve servir, tenho de me matar, é a única saída". Desvencilhou-se dêle e acionou o carro, o homem tentou impedi-la, ela pisou no acelerador e, logo, freou de nôvo; o carro ficara a meio caminho de uma vala aberta na estrada. "Rosália, Rosália, por favor!" Estava algo desorientado. "Por favor, por favor - o que? o que?" Ele: "se a vida pode ser alegre para os mais pobres, é incrível que, exatamente pra você, se transforme num inferno - o inferno está em nós". "E dai? sofro, sofro, sofro… " Agora esmurrava o pára-brisas. Segurou-a pelos braços: "os sofrimentos são relativos". Ela lutou um pouco, cedeu e, súbito, olhando para os lados, deu um grito de susto. O homem soltou-a, virou-se e percebeu que o carro estava cercado por sujeitos mal vestidos. Ia buscar o revólver no porta-luvas, quando a voz simplória veio, baixa: "não somos ladrões, senhor, estamos trabalhando na obra aqui da estrada, a madame não podia ir adiante com o carro só um pouquinho?" Levantou-se e ajudou-os a empurrar o carro para trás. De repente, Rosália; lá dentro, acionou o acelerador, disparou com o mustang, deu um golpe de direção é jogou-se à tôda contra o muro de rochas, paralelo à estrada. Um estrondo, fogo. Quando chegaram, o corpo dela era retalhos de carne chamuscados, sangrando. "Que coisa horrível! por que?" - perguntou o operário de boné. “Mauvaise conscience” - disse o homem, ainda blasé em sua prostração. "O que quer dizer isso?" perguntou de nôvo o operário.
Correio da Manhã
13/05/1969