Chegou em casa mais cedo, de repente. Tiro e queda: abriu a porta do quarto e flagrou a mulher com um sujeito na cama. Meteu a mão no bôlso, sacou o revólver, mirou e fingiu que ia atirar. A mulher deu um berro e um salto pro lado, o outro, lesto, deixou-se escorregar e enfiou-se debaixo da cama.
Sentiu o ridículo da cena, baixou a arma, guardou-a. Preferiu ritualizar a bronca: "Sua sem-vergonha! E você, seu moleque, saia de debaixo da minha cama." A mulher, calada, começou a encará-lo com ar de desafio, enquanto, lá do chão, brotava um homem meio gordinho, com um bigodinho sêco no meio da cara redonda e orelhas de abano. Logo que se pós de pé, emitiu um tímido cumprimento e foi ao banheiro se vestir.
A mulher meteu a roupa e os sapatos com rapidez, apanhou a bôlsa e mandou-se para a rua, batendo a porta. Pouco depois, voltava aquela caricatura de Casanova, de terno marrom e gravata borboleta rimando com o bigodinho. "Então o senhor não tem o menor escrúpulo em invadir minha casa para se deitar com minha mulher?" O outro, ainda sob o impacto dos acontecimentos, olhava para os lados à procura dela. "Não adianta procurá-la, ela já saiu." "Que coisa! Que coisa!" "Que coisa! Que coisa, digo eu - o senhor tem sorte de eu ser um homem calmo e de não transformar o trivial em tragédia." O outro ajustou o colarinho e falou: "Mas o senhor não imagina, de certo modo, nem sou o culpado do que ocorreu." "É, pode ser, por isso mesmo é que quis apenas dar-lhe um susto com o revólver - para que não seja irresponsável." "Posso me sentar?" "À vontade." "O senhor sabe? Conheci a sua mulher faz uma hora, nem sabia que era casada. Estava esperando aparecer um táxi, quando ela, desculpe a verdade assim crua, aproximou-se de mim e colheu-me na maior cantada." "Assim mesmo?" "É, direto ao inseto." "Bem, já não me espanta." "Como?" "Vou dizer a verdade mais crua ao senhor: é ninfomaníaca, sei disso há cêrca de três anos." "Desculpe o palpite, mas..." "Nada, esteja à vontade." "Por que o senhor não se separa?" "Veja bem: o coração tem razões que a própria razão desconhece, isto é Pascal e Orlando Silva." "Vejo que o senhor é um homem altamente civilizado, intelectual." "Pois é, além disso, o psicanalista dela incitou-me ao sacrifício, dizendo que, apesar de tudo, sou o único apoio que tem na vida - há perigo de suicídio se eu der o fora." "Respeito-o, respeito-o, a sua cruz é pesada." "Obrigado, meu amigo."
Volta a mulher puxando um mensageiro pelo braço: "Como é, ainda estão aí conversando?" O marido falou ao outro: "Vamos tomar um cafezinho?" "Sim, vamos." "Voltem só daqui a uma hora", disse ela batendo a porta.
"As vêzes as amizades brotam até debaixo da cama", disse, eufórico, já na rua.
Correio da Manhã
30/04/1969