Voltava lívido, dirigindo o fusca. Havia estado com a vidente e esta, não só lhe descrevera com a maior fidelidade a sua vida passada, presente e futura, interior e exterior, como, ao fim da entrevista, no meio de acessos lancinantes, havia-lhe consumado a predição: "O senhor conserva maus instintos, o senhor vai matar uma pessoa amanhã."
A predição era insuportável - mais grave, trazia o pêso da infalibilidade. E agora? Quem seria sua vítima? A mulher, os filhos, algum amigo dileto? Não dormiu, permanecia obsecado pela fatalidade. Viu o sol subir com o nariz roçando a vidraça. Foi aí que, conformado com o destino, fêz a primeira resolução ponderada: "Se, hoje, tenho forçosamente de matar alguém, que o seja friamente, não sob qualquer impulso emocional." Prosseguindo o pensamento: "Tenho de escolher alguém à mão e cuja morte não faça falta."
A seleção mental não foi árdua. Emergiu, nítida, na memória a figura do Holmes . O chato, o incompetente, o bode expiatório da repartição. Qualquer desacerto que surgia no trabalho, de responsabilidade ignorada, esta era, de imediato, transferida para o Holmes. Além disso, a vítima já tinha vivido 50 anos, monótonos e monocórdios, não possuía família, parentes vivos ou qualquer amigo. Ninguém mesmo conseguia agüentar a sua presença mais do que o tempo necessário para alguma bronca ou determinada gozação. No mais, ele vivia sozinho, numa pensão na Avenida Mem de Sá. O único prejuízo para terceiros com a morte do·Holmes seria a perda do confortável bode expiatório.
Então, neste mesmo dia, pouco antes do término do expediente na repartição, convocou o Holmes a um canto e disse-lhe: "Preciso encontrar-me com você, hoje à noite, com urgência; vamos tratar de um assunto grave, não me pergunte mais nada até lá." A vítima aceitou prontamente.
Local do crime: êrmo e escuro. Vinha conduzindo o fusca e atrasara-se de propósito cerca de 15 minutos, para que o outro já estivesse lá, encostado na árvore marcada. Os faróis iluminaram o vulto de Holmes. Estacionou em frente, bateu leve a porta e avançou com a mão direita estendida para o boa-noite; com a esquerda mantendo o revolver armado dentro do bolso. Quando chegou cara a cara, Holmes, rápido, saca de uma pistola e fuzila-o no peito. Agonizante, pergunta: "Mas como, como...? O outro, aliviado, soprando a pistola: "Há um ano atrás, uma vidente avisou-me que você tentaria me matar pois."
Correio da Manhã
05/02/1969