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A Margem de choque

O moderno cinema da Polônia está entre nós, e por enquanto, praticamente representado pelo diretor Andrzej Wajda. As suas duas realizações, que conhecemos - Kanal e Cinzas e Diamantes - fornecem a medida de um artista bastante lúcido no tocante às virtualidades do métier. Não é um inventor. Nem possui a cerrada formação de um esteta, comprometido com problemas de reformulações básicas da linguagem. A integração rítmica de seus filmes, embora obedecendo àquela técnica de um propositado descozido superficial de algumas sequências, típica vertente de um cinema mais modernizado, não traz, contudo, o alcance de uma estruturação arrojada e original, que obriga o approach de suas obras a se pautar por um pensamento mais . profundo. Wajda serve-se do que já encontra convenientemente mastigado na pragmática; conferindo, no entanto, um raro vigor, a essa seleção de elementos, em virtude da sua depuração e imediaticidade de efeitos. Isso, pela imagem de choque, modulada pela concepção do barroco; e, jogando com êsse contraste - o realismo cru (ou, mesmo, o naturalismo ousado de determinadas passagens) justapôsto com o voluptuoso e, por vêzes, bizarro refinamento harmônico no tratar uma situação - obtém finalmente o seu ingresso na área do insólito. Essa arquitetura barrôca de recursos plásticos-visuais, nem sempre, como o exemplo renitente de um Bergman, está vinculada a um desígnio de caráter simbológico - perfaz também aquêle apêlo a uma espécie de musicalidade via imagem, mediante uma orquestração de tonalidades e massas; compassadas no movimento.
Tanto Kanal, como Cinzas e Diamantes, têm suas narrativas decorrendo no ambiente da Polônia, sob os efeitos do 2º conflito mundial. Em Kanal, é o grupo da resistência, os guerrilheiros que, abnegadamente, enfrentam o ocupante alemão; êste em seus últimos estertôres de guerra.
O objetivo da película, entretanto, não é o de ressaltar o heroismo e, sim, forjar um quadro dantesco do processo de destruição. E dizemos dantesco porque a descida pelos esgotos já pressupõe a própria descida ao inferno, esta, reforçada pelo recitativo do pianista que passou a vagar, numa espécie de etérea loucura, pelo miasma e a podridão.
Por outro lado, a idéia do absurdo também se configura naquele esfôrço inútil resultando apenas em imundície e sangue e de onde escapa o menor aparato funcional. Se a devassa dos personagens contivesse maiores ambições e consequentes implicações, poderia-se, em paralelo, aludir ao ingresso no inferno sartriano. Porém, a caracterização dos tipos humanos, devido a outras solicitações do roteiro e, mesmo, implícita em sua exiguidade pela infra-estrutura do ritmo, permanece com maior frequência no nível descritivo.
Tal aprofundamento do tipo humano, conferindo linhagem ontológica à formulação do comportamento, iria justamente se cristalizar em Cinzas e Diamantes (Popiol i Diamant) e marca a passagem de um estágio descritivo-expressionista (Kanal) para o expressionismo alusivo. A correlação entre as duas Obras se estabelece na concepção do inferno: em Kanal, o inferno coletivo da pequena massa humana que se debate animalescamente pelos esgotos, sobrando apenas o comandante da guerrilha que, voltando à tona, somente tem pela frente a motivação para o suicídio. Já Macick, o protagonista de Popiol i Diamant, muito bem interpretado pelo ator Zbigniew Cybulski, traduz um drama de consciência delineado em todo o desenrolar da película. Chega ao esterco, o inferno individual e morre no meio do lixo, num alegórico desfêcho de grande impacto, à fazer inveja ao próprio Buñuel. Na verdade, o seu inferno não deixa de evidenclar um acondicionamento social para a sua vigência; mas Wajda, aqui, baseado no romance do escritor Jerzy Andrzejewski, apoia-se numa visão de detalhe para atingir a reflexos e reações prefixados por uma realidade ambiental.
Apesar de algumas quedas de ritmo e um correspondente afrouxamento no clima tensional, este filme, mercê inclusive de algumas sequências isoladas de grande magnitude, marca um furo acima do próprio Kanal. O trecho inicial, quando, por engano, dois homens são fuzilados de surprêsa, integrase em padrões antológicos: o uso do corte com bastante efeito, o primeiro plano sempre inventivo, através das disposições do enquadramento, e o som conferindo alternâncias de colorido ao impacto da violência, culminando com a feroz descarga de metralhadora sobre a vítima, às portas da igreja - as balas atravessando seu sobretudo e luzindo chamas dos orifícios.
A fixação barrôca também ainda cresce e melhor se desenvolve com o tratamento de Cinzas e Diamantes, pleno de múltiplos recursos simbólicos. No diálogo entre Maciek e a jovem, nos fundos do hotel, surge; em primeiro plano, um crista de cabeça para baixo, fornecendo uma bizarra vertente alusiva para a situação. Ou então, temos aquêle estranho concêrto macabra, com os participantes entre serpentinas e o pianista instigando a dança de todos - um dos ápices expressionistas da fita.
Outro elemento continuamente solicitado por Wajda, tornando-se característica saliente de seu estilo, é o movimento de câmara. Tôdas as cenas que ilustram a caminhada dos guerrilheiros até à velha mansão abandonada e, a seguir, os preparos e expectativa para o combate com os alemães, constituem um dos pontos altos de Kanal. E, na segunda metade deste mesmo filme, os travellings pelos esgotos acentuam essa intimidade com o recurso, como critério de imprimir o choque ou a surprêsa, dentro de uma atmosfera grotesco-alucinante. Por seu turno, o panorama extrai um filete de expressões faciais - dor, espanto, alucinação - com marcações cuidadas sôbre pequenas nuances, no escôpo de trazer ao drama o seu tônus insólito. E, a concorrer para o realismo cru e a uma sugestão de sufocante ambiência, está o que se poderia denominar uma forma de escultura pesada da figura humana, permanecendo sempre os personagens como que fincados ao seu background, qual uma pedra ou uma planta.
A série de qualidades discerníveis nessas duas realizações malgrado não isentem o cineasta de uma certa imaturidade, são mais do que suficientes para dar-lhe uma posição de realce no cinema europeu, principalmente se levarmos em conta a prática de um princípio sadio em contraposição à onda literária. Aliás, a respeito de Wajda, já existe o depoimento insuspeito de René Clair, sôbre Cinzas e Diamantes: "Um dos mais altos momentos do cinema mundial”. E e de se considerar insuspeito porque o mestre francês da sétima-arte possui uma concepção de linguagem bem diversa da executada pelo colega polonês. Logo adiante, o mesmo Clair compara o filme com a obra de Stroheim. Um voto de lucidez, pois, na realidade, multas facetas, não só da película citada, mas também de Kanal, apresentam caráter de afinidade com a obra do criador de Greed, êste, aliás, o filme chave para o enlace de perspectivas.

Correio da Manhã
15/04/1961

 
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