Foram lançadas, na semana passada, duas produções de qualidade, provenientes de Hollywood: "A Trágica Farsa" (The Harder They Fall), de Mark Robson, e "O Homem Que Sabia Demais" (The Man Who Knew Too Much) , de Alfred Hitchcock.
Com "The Harder They Fall", Mark Robson acerta em cheio, após uma série de rotundas fracassos ou de realizacões sem maior interêsse, à exceção de "A Fúria dos Justos", boa fita, com alguns bons momentos de cinema.
É também o último filme de Humphrey Bogart, o grande ator recentemente falecido, que, dessa forma, encerrou sua carreira com chave de ouro.
Possui a fita excelentes qualidades de ponta a ponta: uma fotografia admirável de um mestre que é Burnet Guffy ("A um Passo da Eternidade", "Volúpia de Matar", etc.); música estritamente funcional de Hugh Friedhoffer; a direção de Robson, que imprimiu um ritmo vigoroso à narrativa, criando seqüências notáveis, principalmente as das lutas de boxe, extraordinariamente bem construídas e dotadas de violência inaudita.
Os dois únicos senões que impedem a esta realização de assumir um caráter transcedental são o tom moralista que paira sôbre a História e alguns recursos de equacionamento de determinados aspectos dramáticos, que se tornaram forçados, defeito que aliás caracteriza boa parte das produções de Hollywood, imbuídas de feição panfletária. Exatamente alguns trechos do cenário que Phillip Yordan extraiu da novela de Bud Schoelberg caem no lugar comum, principalmente no que tange às intervenções da esposa do protagonista, personagem interpretado por uma boa atriz, Jan Sterling, porém inteiramente marginal com relação à trama, apenas funcionando para sublinhar o mencionado aspecto moralista da narração. Tambêm Rod Stéiger vulgariza em muito o tipo do empresário sem escrúpulos, com sua exagerada super-representação.
Proporciona esta película, entre outras coisas, um dos maiores "shows" de montagem, na luta final entre Toro Moreno (Mike Lane) e o campeão (Max Baer), onde todos os efeitos que atuam sensivelmente são diretamente criados pelo excelente jôgo dos cortes pela intertersecção de planos.
Ainda a propósito de "The Harder They Fall".,deve-se chamar a atenção para o fato de a pelicula estar sensivelmente prejudicada pelo nosso ultradeficiente serviço de copiagem. Constitui verdadeiro absurdo que se obrigue por lei que tôdas as fitas em prêto e branco (agora também paira a ameaça sôbre as coloridas) sejam aqui copiadas, quando não dispomos de aparelhagem suficiente para tal.
Mas não foi só isto que aconteceu com o filme de Robson. Tendo sido realizado para exibição em tela comum, foi aqui "adaptado" para um superscope "especial", ao qual conferem ainda um número duzentos e tal, requinte bizantino para uma grossa farsa, cujo efeitos são duplamente nefastos ao público: prejudicam o espetaculo, aumentando-lhe, ao mesmo tempo, o preço em 50%.
Hitchcock também consegue com "O Homem Que Sabia Demais", levar a cabo a sua melhor realização, desde "Pacto Sinistro".
Aproveitando uma história, já por ele filmada na Inglaterra, há longo tempo, volta o mestre do "suspense" a compor com muita classe e mediante os seus habituais ingredientes, uma pequena obra-prima de divertissement.
Nunca foi um grande realizador. Seus filmes carecem geralmente de uma amplitude temática, característica das obras maiores. Entretanto não se pode negar que o cinema deve em muito ao seu arrôjo inventivo, de acôrdo com o qual cria e soluciona muitas seqüências.
Em "The Man Who Knew too Much", deve-se inicialmente chamar a atenção para o excelente uso da côr, propiciado pela câmera de Robert Burks. Em certos momentos chega mesmo a assumir um caráter insólito, como na cena do gabinete do traidor que organizara o frustrado assassínio de seu ministro, onde uma tonalidade vermelha domina inteiramente a sala, atuando também como um símbolo do clima que pairava sôbre o país do qual eram representantes. ·
Nessa realização encontramos quatro seqüências dignas de nota: 1) a do assassinato de Daniel Gélin, em que êste, disfarçado de árabe, circula cambaleante, de costas para a câmera, sem conseguir retirar o punhal enterrado nessa mesma parte do corpo; 2) a briga de James Stewart, na sala cheia de animais empalhados, quando Hitchcock se aproveita para extrair uma série de efeitos bizarros, num ritmo quase burlesco; 3) tôda a cena desenrolada na igreja, quando o falso pastor, inclusive, encurta o sermão a fim de poder livrar-se da ameaça que surge pela presença do herói entre os fiéis; 4) a grande seqüência do "music-hall", em que os espectadores, ja sabendo desde o início que o crime sera perpetrado no instante da batida dos pratos da orquestra, ficam, a partir de seu comêço, já inteiramente a mercê do diretor, que proporciona então um de seus habituais "shows" de suspense. Aqui, podemos destacar, entre outras coisas, a admirável tomada do público entre os pratos que se vão chocar e o revólver que emerge detrás da cortina no momento de apontar para o alvo e que também aponta para o espectador, recurso idêntico usado pelo próprio Hitchcock, na cena do suicídio de "Spellbound" ("Quando Fala o Coracão").
Jornal do Brasil
24/03/1957