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Ingmar Bergman - IV

Ainda a propósito de "Noites de Circo", iremos agora nos reportar a outra das características do "regisseur'' sueco, vinculada à sua técnica de narrativa no cinema - a liberdade temporal. Tal processo invoca, de imediato, um dos recursos mais utilizados no ecran, que é o flash-back.
Em grande parte dos filmes o flash-back é perfeitamente substituível pelo monólogo ou pelo diálogo, cabendo a opção aos próprlos realizadores, que procuram, de acôrdo com o esquema traçado, verificar por qual dos meios poderiam melhor apurar a linguagem cinematográflca.
Entretanto, Bergman, ao se utilizar do flash-back, confere a este uma função saliente - essencial, nunca acidental - dentro da estruturação da obra. Não atua o flash-back apenas incidentalmente, a qualificar uma das ramificações acessórias da temática do filme; é uma parte consubstanciada visceralmente ao todo, contribuindo para condicionar o sentido do movimento de temas nas diversas áreas a serem delineadas pelos vetores da estrutura.
Mediante essa ruptura da lógica do tempo, amplia-se e, ao mesmo tempo fertiliza-se o campo de operação dos agentes simbológicos. Nisso ele segue em paralelo com a técnica do romance moderno, rompendo uma longa tradição da linguagem direta e talvez seja Faulkner, de "O Velho", "Santuário'' e “Uma Fábula", principalmente - com quem mais se assemelhe na conjugação dos métodos.
Voltando à mencionada sequência de "Noites de Circo", à primeira vista parece, embora esteticamente admirável comum, no que se refere ao modo como o flash-back foi inserido no começo da película e extremamente deslocada do ritmo e da própria história. Terminada, porém, a fita, desvenda-se a sua importancia vital. Colocada assim no princípio, anuncia o fim, antecipando os efeitos de repercussão dramática a serem desfechados pelo patos criado. O que ocorre durante o banho de Alma não será senão um reflexo do que acontecerá no fim, quando Albert, o dono do circo, provoca em pleno picadeiro o sedutor de sua companheira, a jovem amazona. Este último, saltando na arena, surrará zombateiramente o pobre ofendido, diante da assistência, que na cena do banho eram os soldados e os colegas do palhaço.
Essa sequência da briga, também excelente, reveste-se de brutal selvageria, atuando o diretor com invulgar maestria, desde o início, quando, após o primeiro murro desferido sôbre Albert, provoca um corte brusco para a cara de um palhaço assustado, com a boca exageradamente esparramada, de tinta. Servindo-se principalmente de recursos de pura imagem, consegue Bergman atingir o que grande parte dos estilistas dda violência do cinema americano alcançam mediante recursos enfaticamente sonoros.
Após o triste papel ridículo, tentará Albert o suicidio e, numa cena igualmente admirável, em que os olhos de um gato condicionam as variações da tensão do espectador, ele desistirá porque seu destino irremediavelmente traçado é o de rodar à toa, com sua carroça, de cidade em cidade, e mais que tudo, porque não é um personagem metafisicamente responsável nem consciente. Jamais poderá assumir uma atitude literária, pois não tem capacidade especulativa sobre o significado mítico das coisas - é quase um animal doméstico e, nessa oportunidade, o instinto de auto-preservação superará a noção do trágico.
Destarte, não seria funcionalmente adequado que a grandlosldade, a amplitude do drama, em estado bruto - latente, fosse lapidada mediante as reações do próprio protagonista. Daí ter sido antecipada a eclosão que transferida para aquele memorável flash-back inicial, atordoante tanto pela sua grandeza como pelo mistério, despertará o poder catártico do espectador para todo o resto do desenrolar da fita.
Já a linha de tensão dramática de Ana (Harriet Anderson), conduzida de maneira direta, com respeito à gradação de intensidade, atingirá seu ponto alto de saturação, decorridos dois têrços do tempo de projeção. É o momento em que se entrega ao cínico ator, um dos típicos e frequentes personagens satanicos de Bergman, com o tio da heroína, em Sommardeck, ou o sedutor do 2º episódio de “Enquanto as Mulheres Esperam”, breve aventura de Ana constitui uma das figuraças das tentativas de fuga do cotidiano, próprias da temática bergminiana. Aqui, todavia, a protagonista conhece sua pequenez, e só terá coragem de se arriscar quando o outro a livra dos escrúpulos oferecendo paga pelo amor e, consequentemente, dando enfase à sua mediocridade. E, noutra cena antológica, volta a "meteur en scène" a atingir uma auto-superação de energia visual, quando todos os elementos postos em cena funcionam com perfeita coesão: os espelhos, além do caráter simbólico, ampliado o campo visual; a jóia, balançando em primeiro plano, numa variação de enquadramento quase que compassada em tempo de ballet; finalmente, a exatidão dos diálogos, conferindo perfeita naturalidade à cena.
Sôbre essa legítima obra-prima que é "Noites de Circo", deve-se ainda chamar a atenção para a impecável fotografia de Sven Nykvist e Hilding Bladh, o acompanhamento musical de Karl Birger Blomdhau, conseguindo em muito intensificar o sublinhamento expressivo da fita, e para a interpretação de Ak Gromberg, que compõe um dos grandes tipos grotescos da sétima arte.
"Noites de Circo” foi considerada pela crítica uruguaia e argentina a melhor película exibida nos anos em que respectivamente foi lançada em ambos os paises, tendo no último superado, inclusive, "La Strada", de Fellini, julgamento que, sob diversos aspectos se reveste de plena razão.

Jornal do Brasil
17/03/1957

 
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