As férias de M. Hulot
Com esta admirável realização, Jacques Tati promove o retôrno da comédia vasada em linguagem essencialmente cinematográfica. Consiste na volta a uma concepção primitiva do gênero, isto é, a dinâmica dos efeitos não está entrosada a priori com a linha do desenvolvimento do tema - desenrola-se autônoma, condicionada principalmente não à idéia ou intenção dos personagens, mas, à sua movimentacão. Com isto, Jacques Tati atinge, em grau de qualidade, ao melhor Chaplin das produçõs em curta metragem, embora dêste, aflore o mínimo de influência na utilização dos recursos .
Em nenhuma cena o diálogo surge como elemento preponderante. É sempre um detalhe, um elemento integrante da parte sonora que atua na composição das sucessivas cenas. Um ritmo leve, vivaz, compassado em diversos trechos com efeitos burlescos, vai do começo ao fim sem a menor dissonância. Destarte, a eficiência da atuação dos intérpretes perde muito de sua importância como fator preponderante para que se alcance o resultado previsto. Basta um bom tipo caricato, uma posição ridícula, uma situação engraçada. "Les Vacances de M. Hulot" satisfaz plenamente quanto a êsse ponto com uma excelente galeria de figuras: aquela típica "miss" inglesa, apaixonada pelo tenis e que procura flertar com Hulot; o estranho casal de velhos, naquele seu constante e silencioso perambular, o marido sempre, alguns passos atraz, a observar atentamente tudo que ocorre; o garçon e o dono do hotel, também extremamente silenciosos, cujas preocupações e desconfianças são apenas moduladas por um mover de olhos; o velho militar aposentado, excessivamente palrador, e que a tôdas as atividades em conjunto procura dar um cunho de manobras; o sul-americano que passa os dias a bebericar ou a jogar cartas; e, finalmente, êsse extraordinário M. Hulot, que não fala mais de dez palavras durante o desenrolar do filme, que anda quase que em passo de ballet e cuja movimentação ininterrupta vem perturbar a tediosa calma dos hóspedes do balneário.
Uma série de situações originais, de preciosos achados cômicos, revigoram permanentemente a vivacidade da sátira. Logo de inicio, temos a cena da estação, quando um alto-falante mal sincronizado desorienta o grupo de pessoas que espera o trem, fazendo que troquem de plataforma a todo instante. Deve ser também lembrada a sucessão de malentendidos na praia, quando o hóspede que tirava fotografias da família recebe um pontapé de Hulot, que julgava, pela posição, estivesse a observar sua partenaire a trocar de roupa na cabina. O dono do hotel a investigar, pelas pegadas, quem lhe sujava o assoalho, a ginástica, o jôgo de tenis, a féerie dos fogos e, finalmente, duas sequências antológicas: a homérica viagem de Hulot, com seu desconjuntado e bizarro automóvel e a cena do entêrro, à qual o protagonista vai ter por acaso e lá desencadeia uma sucessão de quiproquós, fazendo assim que a solenidade termine com os participantes às gargalhadas.
Mas o filme não permanece somente no terreno da sátira de costumes. Há um sentido ainda mais profundo a ser deduzido: a frivolidade e o tédio da burguesia no mundo atual, um mundo de habitantes cansados, incapacitados para as alegrias mais simples que a vida oferece. Tudo constitui motivo de aborrecimento menos para Hulot e a jovem loura. Exemplo significativo é o baile de máscaras, ao qual apenas os dois e algumas crianças comparecem e cujo ruído incomoda os hóspedes que preferiram ficar jogando cartas ou então a ouvir o rádio. Aliás, é pelo som que se consumam diversos momentos de comicidade, sendo que alguns dos efeitos sublinham quase que tôda a película, como a porta do refeitório, rangendo sempre que alguem a abre, o jazz de Hulot e o rádio do salão.
Quanto a Jacques Tati, não e um intérprete fisionômicamente expressivo, mas sua movimentação e seus gestos conferem ao personagem uma exuberante vivacidade. Sua figura avulta com mais importância no tocante à concepção que possui como realizador, já: que "As Férias de M. Hulot" é um filme admirável, a melhor comédia aqui exibida ultimamente.
Jornal do Brasil
17/02/1957