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Julien Duvivier

'L'Affaire Maurizius" serve para que se possa comprovar mais uma vez a extraordinária vitalidade e lucidez de um realizador que, militando ha perto de quarenta anos na sétima arte, até hoje permanece atuante, sem revelar ainda algum sensível sinal de decadência ou esterilidade.
Julien Duvivier é um dos três grandes nomes que, no período compreendido entre o início dos talkies até à segunda grande guerra mundial, melhor se destacaram nessa fase de apogeu e completa hegemonia do cinema francês. Juntamente com Carnê (''Caís das Sombras", Trágico Amanhecer", "Hotel do Norte"), e Renoir ("A Besta Humana", “A Grande Ilusão", "La Regle du Jeu"), legou uma série de fitas antológicas para que se estude o desenvolvimento dos meios de expressão que caracterizaram tal época: "La Belle Équipe", “Un Carnet de Bal", "Pepe Le Moko", “A Bandeira". Foi pouco mais que uma década de grande fastígio em que o realismo no cinema chegou a seu ápice, mediante uma depurada estilização que foi atingida preservando-se sempre, em primeiro plano, uma atenção para com os problemas estéticos em quaisquer das ramificações temáticas do gênero. Contavam os estúdios franceses com eficientes equipes de técnicos e com atores de grande renome e capacidade: Louis Jouvet, Pierre Renoir, Eric Von Stronheim, Mireille Ballin, Pierre Fresnay, Harri Baur, Viviane Romance, Marie Bell, Michel Simon, Jean Gabin, Michelle Morgan, Raimu e muitos outros.
Veio a guerra e, enquanto Carné permanecia em seu pais e, ainda apoiado em Prevert, realizava o que seriam talvez suas duas mais belas fitas, "Os Visitantes da Noite" e "O Boulevard do Crime", Renoir e Duvivier foram para Hollywood e la prosseguiram com sucesso suas respectivas carreiras.
A primeira realização de Duvivier nos Estados Unidos foi levada a efeito em 1938. Logo após ter lançado Pepe Le Moko, foi convidado pela Metro para dirigir "A Grande Valsa". A uma película produzida com os fins imediatos de grande bilheteria, soube o "metteur en scene" gaules valorizar ao máximo, conferindo-lhe um ritmo extremamente vivaz, do princípio ao fim, e compondo, pelo menos, uma cena antológica: a da dança da valsa na qual, mediante o sistemático acompanhar que na câmera realizava dos pés em movimento, conseguia imprimir uma nítida impressão da “ferie" e ebulição provocados pelo novo gênero musical na Velha Viena.
Retornou à França e dirigiu mais três filmes: "La Fin du Jour", "La Charrette Fantôme" e “Un Tel Père et Fils". Dessas, somente conhecemos a "La Charrete Fantôme", que, embora se tratasse de uma produção de qualidade e contando com grandes intérpretes, Louis Jouvet, Pierre Fresnay e Marie Bell, apresentava um aspecto excessivamente literário (as grandes tiradas irreverentes ou metafísicas, vício típico do cinema francês) em sua adaptação da novela de Selma Lagerloff. Por outro lado, passagens dosadas de um realismo demasiado cru ou violento, como a do ataque de hemoptise que sofre o protagonista, vivido por Pierre Fresnay, e focalizada detidamente em primeiro plano.
Em 1940 por volta outra vez a Hollywood e logo tem que se haver com uma superproducão de Alexander Korda, "Lydia", cujo papel-título estava a cargo de Merle Oberon que, então, atravessava sua fase de enorme popularidade. Estretanto, apesar dos vícios incontornáveis de um enrêdo, da fórmula "boxoffice", conseguiu, assessorado pelo extraoridinário fotógrafo Lee Garmes, conduzir a película com admirável dignidade.
Porém, a seguir, realiza duas fitas de relêvo em sua carreira, em nada devendo, artísticamente, aos melhores filmes que dirigiu em seu país de origem: "Tales of Manhatan" e "Flesh and Fantasy”. Ambas dividiam-se em várias histórias e, nesse gênero, foram das melhores que assistimos até hoje. Posteriormente dirige Jean Gabin em "O Impostor".
Em 1945; na França novamente, reaparece em grande estilo com o admirável "Pânico", em que Michel Simon tem uma de suas grandes criações. Vai depois à Inglaterra e fracassa com Ana Karenina, retorna à França e acerta com ''Vítimas do Destino". Segue para a Espanha e filma "Cavalheiro da Aventura" - humor macabro, sátira, plaisanterie - realização parecida a “Beat the Devil", de John Huston, porém inferior a esta última. Volta então em definitivo ao seu pais e, além dos enormes sucessos de bilheteria com as duas filmagens das aventuras de Don Camilo, lança três fitas de qualidade: "Sinfonia de Uma Cidade", "A Festa do Coração" e "O Caso Maurizius".
Essas derradeiras realizações valem também para reafirmar a preservação de determinadas características inerentes há longo tempo na obra de Duvivier: uma frisante versatilidade temática, a procura constante de uma compacta densidade dramática e, posteriormente, um gôsto pelo feérico. Nesse ponto, podemos nos reportar a um trecho do estudo de Gonzalo Anaya Santos, "La Trayectoria de Julien Duvivier", no qual chama atenção com muita propriedade para um dos aspectos do temperamento do conhecido "metteur en scène": "Sua pouca ou nula permeabilidade aos temas da época. É um diretor a quem em nada interessam as peliculas feitas em sua mesma circunstância temporal ou espacial. Durante sua estada na América do Norte, não acusou a mínina influência do ambiente; nem a fina comédia sentimental, nem o gangsterismo, nem a guerra aos costumes yankees, nem as personalidades psicopaticas o atrairam. E é quase certo que não o tenham tentado em: absoluto por um caráter bem marcado que, como bom francês, manifesta: seu estilo literário dentro do cinematográfico." Tal aspecto, entretanto, não se plasmou em tôdas as suas obras com intensidade tal que viesse a prejudicar sensívelmente a sua concepção de cinema. E, em muitos casos, funciona de imediato no sentido de fortalecer aquela densidade dramática quase sempre a aflorar no primeiro plano.
Em “La Fête a Henriette" (A Festa do Coração), o gosto pela "féerie" se manifesta logo ele início, possibilitado pela liberdade no tratamento da história que o próprio cenário já previa. Trata-se de uma sátira ao modo de conceber a realização de filmes, característicos da mentalidade de determinado grupo de cineastas. Quando as imagens se reportam às idéias do argumentista com tendências sádico-melodramáticas, Duvivier aproveita-se para: criar sequências num ritmo extraordinariamente vivo, outras vêzes quase alucinante, como a perseguição da jovem pelo impetuoso mocinho. Nessas passagens, o diretor joga excelentemente com o movimento de câmera - o ''travelling'" vertical, algumas vêzes brusco, o enquadramento através de uma disposição inclinada do Tabre, como a derrotar a insensatez de quem a imaginara.
"Sinfonia de uma Cidade" é um hino à Paris feérica, dos diversos habitantes de tôdas as castas sociais que circulam pelas suas ruas. Manejando simultâneamente com vários episódios, com uma série de personagens, modula o realizador tôdas as tonalidades afluentes desse alegórico canto com uma admirável espontaneidade estilística.

***

"O Caso Maurizius” foi exibido aqui no ano passado, por ocasião do festival da França Films. Seu lançamento regular somente ocorreu, todavia, na última semana. Trata-se de uma adaptação para a tela da famoso romance de Jakob Wasserman. A amplitude temática do livro, seu pungente libelo contra algumas das mais profundas chagas sociais no mundo contemporâneo, a invocação em paralelo do próprio problema existencial, forneciam uma grande oportunidade para que Duvivier desenvolvesse em terreno adequado algumas de suas tendências mais marcantes. E, de início, deve-se chamar a atenção para o impacto que consegue obter o "regisseur” através de uma apurada intensidade dramática. Quando falamos em apurada, queremos dizer que, dada a extensão do romance e a necessidade incontornável de colocar em foco alguns de seus aspectos mais palpitantes, não haveria tempo para que se criasse, primeiramente, uma familiarização dos personagens com o espectador através de uma ambiência que se proporcionasse mediante a função decor a atuar, como muitas vêzes acontece; por meio da utilização do "travelling" largo e meticulosamente lento. Pelo contrário, surgem todos já em ação, movimento cujo equacionamento dos motivos imperantes, logo apreendemos.
Dentro de uma rigorosa e unilateral concentração em seus elementos formais, o filme não apresenta nada de extraordinário em linguagem cinematográfica. No que se refere a cenas isoladas, poder-se-ia, quando muito, chamar a atenção para a sequência em que Waremme descreve, em "flash-back", o assassinato ou então para o inteligente recurso do desfêcho: a entrada do trem no túnel e o aparecimento da palavra
fim do outro lado. É exatamente porém essa intensidade dramática já assinalada que mantém a película viva a todo momento. Jogando perfeitamente com os "close-ups", num equilíbrio admirável em que nunca a monotonia transparece, e dominando totalmente a noção do contrôle de saturação de um determinado trecho para outro, no sentido de manter o ritmo permanentemente vibrátil, consegue o diretor levar a fita em elevado nível até a derradeira cena.
Outro ponto de relevante importância para o êxito foram, sem dúvida, as boas interpretações que pôde extrair de todos os atores com papel destacado. Daniel Gelin, quase sempre algo apático, aéreo mesmo, tem uma correta atuação, como protagonista. Como o intolerante e ambicioso promotor Andergarst, Charles Vanel está à vontade. Eleonora Rossi Drago tem a sua melhor aparição na tela e Anton Walbrook retorna com tôda a sua classe compondo com bastante propriedade a sua parte. Sequências como a do filho recriminando violentamente a atitude do pai, revelam a elevada categoria de seu realizador que a transplanta puramente com as mais impulsivas exterioridades sem jamais tombar no melodrama.
A fotografia de Robert Le Fevre em muito auxilia no que se concerne à atmosfera do filme. Sua câmera funciona magnificamente no fundo escuro aplicado ao "flash-back", na utilização do "flou", na tomada precisa, quase sempre plasmada em tonalidades nebulosas.
Como já se fêz questão de frisar, "L'Affaire Maurizius" não se constitui em nenhuma realização de maior importância. Não encerra em si nada de novo que já não tenha sido devidamente usado, no que tange aos instrumentos dos quais normalmente se servem todos os realizadores. Porém, de qualquer forma, forçoso é reconhecer-se que Julien Duvivier se houve com extrema felicidade ao manejar com invejável maestria tudo que foi planejado. Sua decantada mania pelas feições literárias de qualquer tratamento de caráter cinematográfico, e as diversas variantes da temática do livro de Wasserman, ajustaramse com eficiência. Sem deixar que jamais o libelo que encerra o argumento se diluísse num fluxo narrativo sem maiores consequências, manteve em alto grau seu poder de penetração, de infiltração na consciência do espectador facilmente encontrado no romance original. Por outro lado, o suicídio do protagonista na sequência final é um incisivo sublinhamento à mensagem da obra, cujo impacto emocional se estende forçosamente "a posteriori”.
A detonação de tal efeito se estriba principalmente no critério simples, claro, imprimido sôbre o tratamento dessa passagem. Leonard saiu da prisão, não em função do reconhecimento do erro judiciário do qual fôra vítima, mas através de um indulto, solução exatamente encontrada a fim de que se salvaguardasse a reputação pública de todos que compunham o maquinismo judiciário que o condenou, entre êles, principalmente, o promotor Andergarst, cuja atuação no processo lhe valera como o mais importante fator a impulsionar sua ascenção na carreira que abraçara. A seguir vem a completa desilusão do ex-condenado para com o mundo, em virtude da hostilidade ou da insensatez do meio ou mesmo dos entes considerados mais caros. Viaja então num trem e, subitamente, aflora a brusca resolução; levanta-se, ergue pela última vez a fronte com os olhos vagos e se lança no espaço quando justamente o expresso entrava num túnel. Nesse ponto, encerra-se a película.
A decisão do protagonista era lógica - mas esta qualidade que imediatamente reconhecemos, dentro do esquema traçado, surge repentinamente, da maneira mais incisiva possível no que tange ao poder de penetração da mensagem do filme. É o puro protesto contra uma absurda ordem das coisas, apresentado de um modo simples, depurado, prescindindo, no caso, de qualquer sublinhamento alegórico,ou de qualquer sorte de recurso simbólico. Desprezando um provável lugar comum que pudesse trair tôda a intensidade do momento, houve-se o realizador como o mestre que é, solucionando com invulgar
energia a sequência, mediante o tratamento mais objetivo, sêco, que possivelmente lhe seria permitido fazê-lo.

Jornal do Brasil
21/04/1957

 
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