Muito mais que a de Nicholas Ray, que juntamente com êle forma o duo de cineastas americanos atualmente mais discutidos e estudados, avulta, no momento, a importância de Robert Aldrich.
Com relação ao primeiro se verifica uma injustificada euforia de exaltações ao seu talento após o lançamento de suas derradeiras produções, principalmente da parte de alguns elementos da nóvel equipe de críticos de "Cahiers du Cinema" (François Truffaut, Jean Domarchi, Jacques Rivette - até mesmo um Eric Rohmer bem lúcido no que. se refere a vários assuntos, não escapou ao contágio), sendo que, um dêles já o comparou com Bach – caracteristica típica do que poderíamos denominar de processo post-surrealístico para equiparação de valores. A carreira de NichoIas Ray até hoje tem sido desigual e mesmo "Juventude Transviada", a sua realização decisivamente marcante, não deixa de apresentar alguns fatôres negativos sob o ponto de vista da tabulação temática, isto é, dentro de seu critério de elaboração através do complexo argumento-cenário. E, muito menos concebível ainda são os esforços para conferir méritos a "Sangue Ardente", um filme absolutamente indefensável.
Aldrich, pelo contrário, a partir de "Bronco Apache" até êsse admirável "Attack" vem palmilhando uma trilha que o coloca, por ora, como o realizador mais inventivo de Hollywood e, ao mesmo tempo, como um dos mais importantes, na linha de frente - logo acima ou abaixo, conforme as circunstâncias delimitantes de um critério de comparação – com Mankiewicz, Huston, Kazan, Stevens, Zinneman, Ford e Billy Wilder.
Emhora não oferecendo ainda as nítidas características do que definiríamos como "estilo Aldrich", "Apache” foi uma realização muito digna, mantendo seu responsável as tonalidades mais sóbrias para seu sentido épico. Filia-se a uma série de filmes, iniciada com “Broken Arrew”, de Delmer Daves, cujo objetivo precípuo é o de humanizar os índios, focalizando os diversos problemas acarretados a toda uma raça em virtude de uma existência, insegura, nômade, a que era acarretada a enfrentar.
A seguir, no fantástico e desconcertante "Vera Cruz", podemos aproximá-lo do John Huston “blagueur” de "Beat the Devil'' e "The African Queen”. Nesse filme já se observa a cristalização de uma apurada estilística, sempre calcada em evidentes imperativos de ordem estética. Invertendo por completo as equações necessárias para o desenvolvimento de um melodrama, o "metteur en scène" cria um ritmo extravagante, situações paradoxalmente inesperadas e, pelo menos, uma sequência antológica: a do duelo final de Gary Cooper e Burt Lancaster. Nessa ocasião, o bem e o mal que "funcionavam" como aliados para criar uma supra-ambiguidade a atuar como fator de decomposição dos clássicos postulados que regem a grande farsa, que para Aldrich seria a da aventura por um ideal, tornam a se desmembrar num irônico e nostálgico sublinhamento dessa mesma concepção. Noutras palavras: a história de mocinho pura, quer dizer, despida dos falsos preconceitos estruturais a justificar a aventura, seria ridícula por ser absurda, caso essa peculiaridade não fôsse propositadamente adaptada ao contexto. Uma lúcida reintroversão dos preceitos temáticos elidirá por completo a ameaça do irrisório de se fantasiar a sério, frente a um espelho.
Posteriormente, revelando estupenda versatilidade, vêmo-Io passar para o filme de "gangsters" com "Kiss Me Deadly" - um dos melhores no gênero dos últimos anos, apenas pouco inferior a "O Grande Golpe" (The Killing), de Stanley Kubrick (1).
Apesar de ter-se empenhado nessa realização contra a vontade, segundo mesmo declarou em recente entrevista ao "Cahiers du Cinema”, forçado a lidar com um argumento que lhe foi impôsto, malgrado êle próprio, construiu uma bela película. Partindo então da novela de Mickey Spillane, Aldrich se aproveitou para, mediante a própria história, fazer um impressionante apanhado de uma civilização caótica, a qual justamente é quem possibilita o aparecimento das· histórias em quadrinhos ou de indivíduos como o autor do entrecho. Mesmo o herói, bem interpretado por Ralph Meeker, um personagem frio, praticamente amoral, não estaria jamais consciente do que aflora nas entrelinhas. Apenas e exclusivamente se atém a desempenhar sua parte no jôgo - o jôgo a que o diretor obedece friamente para espelhar o clima da falta de sentido das coisas, da ausência de uma convincente fixação de valores. E, em tais condições, movimenta-se incessantemente, livrando-se sempre com desembaraço da traição das louras, das agressões traiçoeiras ou da bomba que lhe colocam no motor do automóvel. Finalmente, na derradeira cena, à constatação de um mundo alucinante, é conferida uma transcendência cósmica através da explosão que sacode toda a paragem.
"A Grande Chantagem" (The Big Knife) se constitui na produção mais ambiciosa e, por enquanto, também, no melhor filme de sua carreira. É, por outro lado, o libelo mais incisivo e corajoso feito em Hollywood contra a própria Hollywood. Deve-se ressaltar que a amplitude temática de "A Grande Chantagem'' avulta em contraposição a "Attack". Enquanto no último tôda a tensão criada pelo impacto dramático se evola com a solução fornecida para o destino de cada personagem, no primeiro a tese permanece viva. Apesar de ser a Meca do cinema o objetivo de mira imediato, o que fica após o término da película é o choque provocado por um dos exemplos mais tocantes do triste processo de rapinagem e degradação que pauta todo um complexo de vida no mundo de hoje, principalmente o mundo supercapitalista, do qual Hollywood é um dos exemplos mais característicos. Vale lembrar, sob êsse aspecto, a admirável composição do tipo do produtor de filmes levada a cabo por Rod Steiger, na qual todas as características físicas, todas as reações estão concentradas numa rara e eficiente figuração do sórdido businness-man.
No sentido formal logo de início se denota a extraordinária e inventiva concepção do enquadramento. Cenas como a de Jack Palance tomando massagem, enquanto palestra com seu agente, realçam a extrema valorização visual de imagens que se dinamizam; através da tomada estática, somente pelo esmerado uso da iluminação e do enquadramento, prescindindo do "travelling". O corpo do ator, no grande primeiro plano, atravessado quase em diagonal com a posição do interlocutor, destaca-se com nitidez e cria um efeito tridimencional em virtude da interseção dos elementos de composição e a precisa graduação fornecida pelo iluminador.
"The Big Knife" talvez não tenha sido a grande obra-prima que merecia, por razão de não ter o regisseur conseguido superar certos aspectos teatrais da trama. Entretanto serviu para demonstrar a capacidade de um realizador que atingia plena maturidade em seu metier sem necessitar de diluir fórmulas já por demais desgastadas. Ao contrário, revelava uma notável concepção de como utilizar o "shot'', ao conferir um vigor quase inusitado às magens mediante perfeita noção de como aprofundar o campo visual e, ao mesmo tempo, colocar em evidência o detalhe convergente de tôda a estruturação dos elementos que, em cada sequência, deverão concorrer para compor o quadro.
É exataniente na concepção da tomada, no método de angulação do enquadramento, no "travelling" sinuoso, por vêzes em movimento de câmera inesperado, que se pode basear uma conceituação do que seja o estilo Aldrich. Para êle, a angulação do "shot" obedecerá sempre a um critério que torne impossível ao espectador enxergar mais do que o "metteur eu scène" deseja. O julgamento da assistência não interessa porque não é esta que faz o filme. Destarte, é mister que se impeça que as deduções sejam por demais diferentes das que possui o realizador. Assim, por intermédio de recursos quase sempre novos, inesperados, pelo método insólito de chamar a atenção sôbre as peças que mais interessam, é fácil manter o espectador num transe que o impeça de "enxergar" em demasia. Em "Fôlhas Mortas", por exemplo, após um determinado corte, aparece de súbito um enorme telefone que nos entra pelos olhos de imediato, antes que pudéssemos reparar até mesmo onde se localizava. Nessa fita existe um dos melhores "flashbacks" já imaginados. Logo posteriormente ao princípio da história, Joan Crawford assiste a um recital de piano, e vemos o seu rosto entre os dos muitos espectadores. Depois, a tela vai escurecendo até que apenas a sua face fique iluminada. Isto se constitui já, em si, num admirável recurso de efeito simbólico a fim de demonstrar que, embora se encontre entre um grupo enorme de pessoas, acha-se só, pois sua atenção não se concentra no palco, como todo mundo, e sim na rememoração do que vem a seguir: um passado de privações quando se sentia obrigada a cuidar exclusivamente de um pai doente. Aqui, Aldrich dando vasão outra vez à sua extraordinária capacidade inventiva, consegue se expressar com perfeita economia de linguagem, focalizando apenas o tronco da atriz em volta do leito em que está o velho.
A propósito de "Autumn Leaves", deve-se lembrar outro admirável "tour de force" do diretor ao extrair uma grande performance de Joan Crawford, que, aparentemente, atravessava um período de irremediável decadência. Com uma exagerada e, por vêzes, ridícula exuberância, a famosa atriz vinha se tornando um autêntico Kirk Douglas feminino, o qual nem também Nicholas Ray, em "Johnny Guitar", tinha conseguido controlar.
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É, através do espírito e de um pálido sublinhamento poético, o Milestone de "Sem Novidade no Front" em "Um Passeio ao Sol", quem mais nos recordamos, ao assistir "Attack". Dêle, Aldrich já fôra assistente de direção, e pode-se logo de início verificar ter assimilado o essencial das qualidades do outro grande "metteur en scène" do passado sem deturpar a sua própria personalidade. Aliás, boas foram as suas convivências numa fase que denominaríamos de aprendizado: além de Milestone um Chaplin, um Zinneman, um Renoir, uma fonte de influências invejável e, mais do que tudo, eclética.
A fita talvez tenha consistido para o realizador um empreendimento mais ambicioso ainda que "The Big Knife". Baseia-se num cenário de James Poe, oriundo da peça teatral "Fragile Fox", de Norman Brooks. E, justamente o caráter do argumento é que nos parece ter impedido o diretor de conferir a transcendência temática que era de se esperar a um filme rigorosamente exato, perfeito em tudo que envolve os critérios de solucão formal encontrados para a sua confecção. Como já foi acima assinalado, a tensão dramática existente tem apenas sua razão de ser enquanto o jôgo com os diversos elementos estruturantes do entrecho se encontra vivo. Findo o espetáculo, não permanece um impacto maior a traduzir qualquer tese antibélica ou autimilitarista. O filme se encerra em si mesmo, ficando todos os acontecimentos narrados condicionados a um aspecto meramente acidental. Não que faltasse coragem a Aldrich de ir mais longe - "A Grande Chantagem" prova exatamente o oposto - mas para tanto era necessário quebrar o sentido do "script", o que não quis ou não pôde fazê-lo. Sob êsse ponto de vista, "From Here to Eternity", de Fred Zinneman, foi muito mais amplo, aberto. Observe-se nessa altura a diferença entre o comandante que apreciava o boxe, dessa última realização, com o covarde capitão de "Morte Sem Glória”. Se no primeiro constata-se facilmente que grande parte dos defeitos de sua formacão foram criados ou alimentados pela vida em caserna, já o outro na menos convincente cena do filme, explica ter sido o pai, através da educação que lhe proporcionara, o maior culpado. A indagação que, de pronto, virá de como permitem que um incapaz comande uma companhia, surge como resposta um coronel venal, com êle ligado a interêsses políticos e que tudo fará para ocultar o fato. Fica portanto fechado o círculo que caracteriza a exceção, mesmo porque, no fim, o tenente Woodruff ligará para o general Parsons relatando as ocorrências anormais.
Abstraindo tôdas as consideracões enunciadas e, agora, encarando o filme sob o aspecto da ação imediatamente correlacionada com a trama, pode-se dizer que "Attack" é cinema no mais elevado nível, desde a apresentacão dos letreiros até a derradeira cena. O capacete que rola a encosta e fustiga a flor é um eficiente contraponto lírico à violência que se desencadeará e, por outro lado, lembra em muito a passagem final de "Sem Novidade no Front", de Lewis Milestone, quando Lew Ayres ao se esgueirar pela trincheira para apanhar uma borboleta é alvejado pelo soldado inimigo. Daí em diante, é um puro clima de guerra, estúpida, brutal, mas necessária, que virá a imperar.
A fim de conferir fôrça às imagens, principalmente nas sequências em exteriores, torna -se quase tirânico o empenho de Aldrich sôbre o fotógrafo, Joseph Biroc. Não há uma cena sequer que não obedeça a um rigoroso aprimoramento visual, o enquadramento preciso, dentro de uma constante variação nas tomadas, desde a vertical, como o trecho do jôgo de poquer até à quase paralela ao solo, no avanço dos soldados contra o inimigo.
A compacta densidade dramatica, obtida mediante êsses recursos, cria uma ambiência alucinante para o entrecho. Se não existe a configuração de um libelo atuante, chega-se, em certo sentido, a um paroxismo do absurdo sartriano de "Mortos Sem Sepultura". Nesta peça o que há de aterrador é o sofrimento sem razão de ser daqueles presos que são submetidos a torturas para confessar o que desconhecem. Aqui, é um grupo de soldados que deseja lutar, mas cuja ârisia fica sufocada pelo conhecimento da imposibilidade em realizar pelo menos um ataque que resulte em sucesso, em virtude da insana covardia de seu comandante. Contra êle se insurgirá o tenente Costa (Jack Palance) cuja luta é pelo direito. Costa, na realidade, corresponde a uma pura incarnação do justiceiro e, quando no final morre, tôda a impressionante distorção de seu rosto denota a dor em não ter podido cumprir a missão, à qual se propusera, isto é, vingar-se do culpado pela trucidação de seus companheiros.
Os tanques (que, aliás, o realizador viu-se nas contingências de comprar, já que o Exército negou-se terminantemente a auxiliá-lo para esta película) representam também um papel marcante. Parecem seres vivos pelo modo com que se locomovem ou, quando param, como se es tivessem a espreitar a prêsa e, na sequência mais violenta, um dêles esmaga o braço de Jack Palance, que, acuado, contra a parede encarava-o aterrorizado como se fôsse um monstro que iria devorá-lo.
No que se refere ao tratamento emprestado ao personagem do capitão, vivido por Eddie Albert, existe um certo excesso em caracterizar um homem medroso. A interpretação carecia ele maior sobriedade, bem como o modo de conceber certas reações deveria obedecer a um processo mais sutil. Em relação aos métodos de equacionamento do impacto dramático, o ridículo, pelo que às vêzes passam certas atitudes do personagem, é inteiraimente inaceitável. Psicologicamente encarada, parece também estranha a moderação com que enfrenta Costa, no momento em que êste se predispõe a cumprir o que prometera, isto é, matá-lo.
Tal pormenor e as limitações para uma maior diretriz existentes no argumento são as duas únicas lacunas que impedem que "Morte Sem Glória", assim como "A Grande Chantagem", seja a obra-prima que Robert Aldrich há muito tempo vem prometendo lançar. Porém, de qualquer forma, sua filmografia se estende já com cinco realizações de indiscutível valor e, no momento, talvez seja o cineasta de Hollywood que mais mereça nossa confiança, devendo temer mesmo, nesse terreno, mais que os veteranos, os novos: o Charles Laughton de "Mensageiro do Diabo", o Stanley Kubrick, de "O Grande Golpe", ou um Gilbert S. Kay, de "The Three Bad Sisters".
Jornal do Brasil
12/05/1957