A primeira sensação que nos transmite o moderno cinema japonês é a de um extraordinário vigor. A pureza das imagens, a movimentação incessante, tanto dos atores como da câmera, mantém todas as seqüências permanentemente vivas.
Aqui no Rio, somente foram exibidas, por ora, dias fitas dirigidas por Akira Kurosawa, “Rashomon” e “Os Sete Samurais”, e, apenas num sábado, escondida no cinema Eskye, da Tijuca, sem um mínimo de públicidade, a excelente realização de Keigo Kimura, “A Bela e os Ladrões”. Tratava-se de um “festival” da Tabajara Film que, além dessa obra, possui em depósito outros filmes de reconhecido valor aguardando exibição há longo tempo, como, por exemplo, “Juventude, Eterno Tesouro” e “Sede de Paixões”, ambas de Igmar Bargman.
Quando o fenômeno “Rashomon” eclodiu no Festival de Veneza, todos os olhos se voltaram então para o cinema japonês, que ressurgia de modo avassalador, despertando a partir fato, o interesse de todos os que se preocupam com os problemas estéticos da sétima arte.
“Rashomon” não apenas revelava um novo “metteur en scene”, dotado de uma grande capacidade. Tratava-se de uma legitima obra-prima, talvez mais importante, sob diversos aspectos, dos últimos anos. Entretanto, ao ser lançado aqui, através do circuito do Sr. Vital Ramos de Castro, não “mereceu” exibição na principal sala de espetáculos dessa empresa, o Plaza. Uma fugaz semana, semi-oculto, e mais nada.
“Os Sete Samurais” teve outra sorte, por, no ano passado, entreou num melhor circuito de cinemas e, agora, na semana passada, foi reprisada (melhor sorte apenas no que se refere a esse aspecto, já que, por outro lado, a fita foi cortada em cerca de uma hora de projeção, medida que provavelmente foi levada a efeito como a “benéfica” intenção que se “chateasse: em demasia os pobres espectadores).
Pertence essa realização ao grande ciclo de filme históricos e narra as lutas e vicissitudes de uma pequena aldeia para se livrar dos ataques de grupos de bandoleiros que, em determinada época, infestavam algumas regiões do país.
Desde o início a película se impõe. Uma fotografia, com efeitos admiravelmente dosados, nos apresenta a aldeia dosada pelo terror. Um grupo de habitantes, curvados numa clareira, em lamento uníssono, às vezes quebrado de súbito por gritos ne reverberações violentas, constitui uma cena impressionante. O mesmo, a seguir, poder-se-ia dizer, quanto à seqüência em que se consulta o velho moinho: do claro-escuro, o grande “close-up” das feições bizarras do ancião, com as outras cabeças movimentando-se por detrás – tudo concebido por uma sólida e rigida composição, condicionada a um enquadramento clássico.
Mais tarde, durante as cenas em que se procuram os samurais que estejam dispostos a auxiliar a população em troca de comida, temos duas passagens extraordinárias: na primeira, quando um deles, após raspar a cabeça vai buscar o ladrão que se refugiou num casebre com uma criança raptada. O samurai, dizendo-se sacerdote, burla a vigilância do malfeitor, entra de repente na cabana, ouve-se um grito lancinante, e este último sai com as feições rígidas, como se usasse mesmo uma máscara de cera, volteia, quase que em tempo de “ballet”, e tomba levemente no chão, frente a multidão que assistia o episódio completamente estarrecida.
Na outra, quando somente faltavam encontrar dois samurais para que se inteirasse o número de sete, considerado necessário para o empreendimento a que se visava, vamos encontrar mais dois em via de travarem duelo mortal num lugar descampado. Novamente existe um grande número de pessoas assistindo a cena. Nesse ponto, antes de tudo, devemos frisar o excelente uso do silêncio que se cria uma grande tensão até o choque final em que o mais hábil desfere mortal golpe em seu adversário que tomba muito vagarosamente, como se estivesse, após a morto, em estado flutuante, enquanto o outro permanece em rigidez de estátua, numa posição clássica de combate, aguardando a queda final.
Os trechos de batalha são também admiráveis, tanto no que relaciona com a ferocidade e insólita selvageria, típicas do cinema japonês, como outrossim pela utilização da montagem – cortes exatos, perfeita noção do jogo das variações e interseções de planos, Nessas seqüências, o acompanhamento musical assume um papel relevante, proporcionando uma densidade compacta à atmosfera do filme.
Na floresta, as cenas de amor revestem-se igualmente estranha beleza, principalmente quando surge o grande “close-up”, de cuja utilização Kurosawa é um verdadeiro mestre. Aqui ambos os rostos movimentam-se em harmoniosa conjugação, a face da moça quase sempre vista pela metade, o olho arregalado, um jogo de sombras proporcionado pela cabeça do jovem de costas para a câmera, a se mexer em sentido horizontal – tudo isto calcado num diálogo exasperante. Nesta mesma passagem, o diretor se utiliza dos “travellings” verticais, de modo idêntico ao usado em “Rashomon”: o topo das árvores iluminado pelos raios de sol, fornecendo a configuração de um novo Eden, um fugaz paraíso, também pontilhado pelas flores brancas no solo.
Um dos mais constantes e magníficos efeitos obtidos pelos “camera-men” orientais é a extraordinária nitidez dos contornos, conferindo a idéia de uma estampa viva, principalmente nos trechos onde impera a visualização da natureza com as construções simples. Os “shots” da meia e longa distância na flores são um exemplo disso, assim como determinadas cenas de “A Bela e os Ladrões”, em especial aquelas em que figura o velho casarão.
Finalmente, não se pode também deixar de chamar a atenção para a excepcional “performance” de Toshiro Mifune, o bandido em “Rashomon” e, agora, o falso samurai. Mediante as mais diversas e arrebatadores contrações faciais, em constante movimentação, é uma verdadeira pilha de sensações, indo do erótico ao ridículo, do agressivo ao triste, numa admirável rapidez, no que tange às variações expressivas. E, finda a batalha, aquele corpo estendido à beira de um riacho, não parece ser o seu, já que nunca nos acostumaríamos em saber de que jamais retornaria à vida.
Jornal do Brasil
07/04/1957