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Ingmar Bergman a indução de uma linguagem

O ápice de uma incursão ao pathos, com "Noites de Circo", e o imediato salto para um gênero com qualidade de efeitos tão diversa, como é a comédia, através de "Uma Lição de Amor", marcou, sem dúvida, e como era de prever, um
turning-point na carreira de Ingmar Bergman.
No papel de comediógrafo, o hoje já famoso cineasta sueco prosseguiu evidenciando com desembaraço o seu talento, a denotar, inclusive, a capacidade de absorver num sentido de evolução, criativo, algumas influências de outros veteranos especialistas no gênero. Contudo, não era essa a consumação final de seu caminho. Após um pequeno ciclo, magnificamente encerrado com "Sorrisos de Uma Noite de Amor", surgiu "O Sétimo Sêlo", filme desenrolado na era medieval, contendo profundas perquirições de caráter metafísico a convergir para a velha indagação-lastro: vida x morte e/ou deus x demo.
O homem de cinema, dentro de um critério temático de sua atitude criativa, aprofunda-se como pensador. Abandona a convulsão patética, sob o aspecto de detonação final de um esquema de construção dramática, e fixa-se no âmago, na concentração da tese, elidindo as consequências periféricas do desenvolvimento anedótico de um entrecho.
"Juventude", a película preferida pelo autor, de acordo com uma entrevista que deu, já oferecida em sua estrutura de fabulação um problema semelhante e parece ter razão um crítico quando diz que "O Sétimo Sêlo" (1956) completa "Juventude" (1950), pois tem razão Bergman ao ligar uma fita à outra, declarando, ao mesmo tempo, ter feito a mais antiga com o coração e a mais nova com a cabeça. Aqui, não se trata naturalmente de discernir afinidades conteudísticas, em virtude, está claro, de apresentarem essência diversa, em tempo e espaço, ambas as narrativas. É o modo de pensar que as aproxima, isto é, colocar um jôgo de causas e efeitos de uma dada conjuntura em têrmos de abstração a fim de elaborar uma impostação no terreno filosófico, livre, portanto, de uma vinculação a qualquer situação objetiva e, daí, perecível, no momento em que o problema se esgota em fatôres pertinentes ao âmbito de uma atualidade contingente. Chega-se com isso aquêle ponto que já invocáramos anteriormente, a propósito de Ingmar Bergman: o fluxo simbolista, a linguagem de estripe mallarmaica, quando, num mundo de eventos alegóricos e objetos-signo, movem-se alguns personagens com verdadeiros foros de entidade mítica.
Agora, entretanto, um filme dessa sua última fase, como "Os Morangos Silvestres" (Smultronstallet), evidencia uma depuração num sentido fenomenológico na relação entre êsses elementos de fixação simbológica, no momento em que êles não surgem mais vinculados num esquema de construção dramática de teor dedutivo, importando numa conclusão aprioristicamente calculada via uma ordenação de dados-premissas para a velha trilha de princípio-meio-fim. Não existe linha de desenvolvimento que atinja a um ponto final ou então um circulo que se encerre definitivamente. Há, sim, um princípio de justaposição amparando o método de ligar as cenas ou os acontecimentos entre si, quando a ação decorre fragmentada em duas rotas paralelas, uma, leit-motiv - a viagem do ancião - a outra, uma sucessão de sonhos que incidem e modificam o desenrolar da primeira. E, abolidia a implicação específica de uma determinada conclusão, a película assemelha-se com a antiga concepção do rio, de Heráclito, isto é, transforma-se constantemente, muda de feição de um trecho para outro e, mesmo finda, não pára em nossa imaginação. Não pára como também o escorrer da vida, qual um fluxo de organicidade, envolve um sem número de interpretações, nenhuma que compreenda o conjunto total de fatos e coisas de um modo definitivo. Na viagem que empreende de automóvel, de Estocolmo a Lund, para o seu jubileu, o Professor Isak Borg penetra num clima de inquietação provocada por sonhos e reminiscências e, umas vêzes chega à idéia de que não representa nada, noutras, de que enfim houve algum sentido em sua existência. O estado de inquietação humaniza, contudo, a sua atitude em relação aos entes que o cercam, desperta-o do alheiamento, como um alívio das preocupações em que estava imerso e, no final, poderá dormir mais tranquilo - conciliado e conformado com o princípio de relatividade que pauta o valor e a utilidade de qualquer descoberta ou constatação.
Novamente acumulando os encargos de diretor e roteirista, Bergman, nas estrias de um processo de indução, retorna ao engenhoso recurso de secionar a linearidade do curso da ação no presente, desta feita não mais através do emprêgo do flash-back, porém da interpolação de sequências oníricas. O efeito com vistas à formulação de um ritmo pode trazer resultados idênticos. Aqui todavia, a ambivalência de tempo está condicionada a uma única matriz: a memória e a imaginação do protagonista e o prisma da psicanálise adotado pelo realizador. Daí, o único flash-back existente é a hora em que Marianne (Ingrid Thulin) narra ao sogro o encontro com o marido num dia chuvoso, dentro e em tôrno do carro, e as imagens limitam-se, portanto, a uma exposição descritiva. Trata-se de uma opção que não deixa de obedecer a um imperativo lógico das solicitações de um critério, já que a mencionada passagem não partia de uma espéculação mental do protagonista .
A primeira fuga da ação na rea estranho sonho do velho. Uma admirável sequência de cunhagem dada-expressionista, na qual êle se encontra numa ruela quieta e deserta. Surge o enorme relógio sem ponteiros, depois a carruagem negra vazia (lembrando aqui um pouco o "Entr’acte" de Clair) e o caixão que tomba e se abre, reconhecendo então o professor o seu próprio cadáver que lhe estende a mão. Um excelente compassar de cortes, à base de uma série de close-up e detalhes marca todo êste trecho, cuja função, de uma espécie de sequência-pauta, assemelha-se em muito à daquela inesquecível, a do banho de Alma em "Noites de Circo".
Nos dois sonhos de retorno à adolidade dá-se logo no início com o lescência e encontro com Sara (Bibi Andersson), a técnica usada pelo diretor lembra em muito a de Alf Sjoberg na introdução do flash-back em "Senhorita Ju!ia". O mesmo ponto de localização da pessoa no presente atua como background da ação no passado. Somente que Bergman conserva o ancião tal qual estava antes de adormecer, com os mesmos 78 anos. Talvez não apenas porque se trata de sonho, mas também porque não participou das ocorrências evocadas.
Os personagens-símbolos são diversos dentro da trama e alguns mantêm a característica tanto na realidade, quanto no sonho. Assim é a jovem que desperta Isak na interrupção da viagem, quando êle fôra tomado pelo sono ao visitar os recantos onde vivera a juventude. Ela é igual a prima Sara e os dois rapazes que acompanham-na, rivais em seu afeto, são tal qual Isak e o primo Sigfrid. Da mesma forma, o casal cujo automóvel capota num choque inopinado com o do professor. O marido, um tipo causticante em sua involução moral, será, noutro sonho, o examinador do velho em sua competência profissional e reprova-o frente a um grupo de alunos, sentados em suas carteiras, entre os quais aqueles que conduzia em seu carro. Após, o examinador o guiará até a clareira onde a espôsa de Isak consuma a traição com o amante.
A história não fornece a causa nem o desfêcho para o que vinha contido nessas implicações. Nem é necessário. Para um dado sensível, a pluralidade de interpretações, de acordo com a perspectiva de cada um ou das múltiplas perspectivas em que se coloca o protagonista - julgado e julgador, participante e testemunha, integração, ativa ou passiva nos acontecimentos que marcaram a sua vida.
Dizer que Bergman revela a sua maturidade como pensador é pouco se o desvendar a sua atitude ética não importa, no caso de um cineasta, no que vem implícito mediante o impacto da formulação cinematográfica. O esquema básico, imagem por movimento, ativa e dá corpo a tôdas as modulações da expressão de um sentimento. Em "Os Morangos Silvestres" o índice de concentração visual para cada tomada está sempre em grau bastante elevado. O excesso de dialogação empana o ritmo em duas ou três passagens, mas não chega a ferir de modo profundo a contextura da obra. Este ritmo corre sem grandes oscilações, quase numa reiterada cadência, contudo vai cada vez mais se ampliando em seu diapasão, num crescendo horizontal, em oposto à intensidade do crescendo vertical que é o aspecto das realizações de um Hitchcock, por exemplo.
Como bem observou o crítico Feredon Hoveyda, em sua excelente apreciação de "Smulstronstailet", no "Cahiers du Cinéma" de maio do corrente ano, "a concentração sobre apenas um personagem (contrariamente ao hábito do autor) conduz a uma espécie de refinamento, depuração e aprofundamento dos temas bergmanianos". E, do velho mestre, Victor Sjostrom, o diretor extrai uma das maiores interpretações no terreno da sétima-arte. Expressividade fisionômica admirável em todos os close-ups, preciso e sóbrio nos momentos de contida inquietação. Sem dúvida, a melhor homenagem que Bergman podia lhe prêstar.
A tradição de um apurado tratamento plástico, apanágio do cinema nórdico, continua viva nessa película. As cenas que possuem a natureza como pano de fundo, assim qual o caso de "Juventude" ou de "Uma Lição de Amor", estão especialmente ainda mais talhadas nesse sentido. A vegetação reveste-se de luminosidade e envolve os personagens num clima de alegoria pertinente à evocação onírica dos trechos de sonho, onde naturalmente não falta a implicação surrealista. É o admirável momento em que o professor depara, no crepúsculo, com o bêrço do filho de Sara sob uma árvore um exemplo frisante.
Quando a ação permanece no tempo presente há maior sobriedade na recorrência aos efeitos plásticos. Isso pressupõe a diferença entre duas fases, a da lucidez e a do subconsciente. Não existe recurso empregado que não denote calculada meditação, uma racionalização em têrmos de função dos elementos de construção.
"Os Morangos Silvestres" evidencia novamente em Ingmar Bergman o criador versátil em soluções, outra vez inventor como em sua primeira fase que culmina em "Noites de Circo", talvez ainda a sua maior realização. Contrapor, entretanto, uma fase com a outra, em busca de deslindar qual a de maior valor parece-nos difícil, senão prematuro. Se ele aparentemente, não conseguiu superar a inestimável contribuição de duas fitas, como "Juventude" e o mencionado "Noites de Circo", o conjunto de sua obra, por outro lado, ganha na atualidade mais uniformidade em grau qualitativo.

Correio da Manhã
12/09/1959

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

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Jornal do Brasil 17/02/1957

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Jornal do Brasil 03/03/1957

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Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

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Jornal do Brasil 21/04/1957

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