jlg
cinema

  rj  
Vertigo - cinema em alta fidelidade

A carreira de Hitchcock cineasta, já tem quase trinta anos. Durante larga parte desse período é extraordinária a fidelidade que êle mantém a uma concepção de cinema inteiramente pessoal e à sua coerência de realizador que praticamente deu corpo a um gênero específico da sétima-arte, o thriller.
Depois do western, pode-se dizer que o thriller é o gênero mais tipicamente cinematográfico porque tôda uma conjunção de instrumentos propícios ao manêjo de uma rêde de efeitos encontra apenas um critério adequado de soluções mediante uma consumação visual. A contingência da convocação dos elementos formais para uma tal espécie de fita leva-a, com a devida elisão ao caráter temático-anedótico, à área do filme de choque.
Muitos outros cineastas proporcionaram a sua contribuição, por vêzes valiosa, ao gênero: Lang Siodmak, Carol Reed Clouzot ou mesmo Orson Welles - mas nenhum supera o criador de "Rebeca" nesse terreno. Em seu ponto máximo de eficácia, é ainda o melhor o Hith's touch, que compreende um tipo de marcação humorística muito peculiar, sempre adstrito a um jôgo de situações, elaborado amiúde no sentido de exaltar um approach irônico dos múltiplos aspectos de um entrecho. O gôsto pela féerie e pelo divertissement constituem outras facetas do temperamento do mestre do suspense e não deixam de serem subsídios preciosos para enriquecer o grau de possibilidades em formular uma ambiência própria ao thriller.
Não que Hitchcock somente faça películas dessa natureza. “The Trouble with Harry" ou então "Lifeboat”, baseado em Steinbeck fogem da órbita. Todavia, não é aqui, outro tanto, onde êle melhor se realiza, onde a invenção esteja mais presente. E como inventor, no tratamento do detalhe, na concepção arrojada de determinadas sequências de ação, poucos o superam e mesmo a êle se nivelam. Em "Spellbound'' (Quando Fala o Coração), além da sequência onírica, temos a passagem do copo de leite ou a do suicídio, quando o revólver, na hora de detonar, vira-se para a platéia. Em "The Man Who knew too much" (O Homem que sabia demais) – 2ª versão - existe a corrida alucinante de Daniel Gélin com uma faca enterrada nas costas, em "Foreign Correspondent" (Correspondente Estrangeiro), o assassinato do diplomata, mercê o truque da máquina fotográfica. E, no caso de "Stranger in a Train" (Pacto Sinistro), talvez a mais notável: o estrangulamento da jovem filmado através das lentes dos seus óculos caídos no solo.
Por outro lado, essa inventiva hitchcockiana nem sempre vem concebida em têrmos de estrutura. A obsessão por um processo que marca realizadores como Eisenstein, Welles, Ophüls ou Murnau não é, em seu caso, um paradigma, uma atitude definida . Aliás, as películas em que levou o cunho experimental às derradeiras consequências - "Festim Diabólico” (Rope), "A Janela Indiscreta" (Rear Window) - não são as mais bem sucedidas. apesar dos lances de arrôjo que caracterizam um parti-pris eminentemente criativo.
Uma das facetas da constante busca de renovação é o uso da côr. A partir de "Disque M para Matar" (Dial M for murder), todos os seus filmes são em technicolor, existindo permanentemente a intenção de conferir um caráter funcional ao emprêgo das tonalidades e dos contrastes. E a intervencão de um excelente camera-man, Robert Burks - habitual colaborador de Hitchcock desde "Pacto Sinistro'', é uma garantia para um elevado nível técnico e compreensão dos propósitos do diretor.

"Um Corpo que Cai" (Vertigo) é a última fita de Hitchcock. É também a melhor de todas, entre as que conhecemos, uma autêntica obra-prima, prova indubitável da extraordinária lucidez do grande metteur-en-scène. O senso de entrosamento entre o ritmo puramente plástico e uma noção de tempo, de encadeamento de takes, apresenta-se perfeito. E o aproveitamento de todos os outros elementos de construção, a música em especial, está em precisa adequação a um complexo de organicidade.
"Vertigo" é, de início, um thriller; o compassar do ritmo segue as estrias do crescendo, mas no final abre-se em amplitude trágica. O princípio, uma admirável sequência de perseguição por telhados, mostra o protagonista - o detetive Scottie (James Stewart) - a ponto de sofrer uma queda de grande altura. Está apena sustentado por uma calha que vai se desprendendo. Corte. Configura-se a acrofobia (vertigem de alturas) de que é possuidor. Já se sabe que o clímax contará com a introdução dêsse detalhe característico ao personagem principal. A narrativa, contudo oferece dois climaxes, ambos no alto do campanário. Quando o primeiro cessa, há uma pausa no crescendo constante. Porém, na hora em que a história volta a subir em tensão, a segunda trajetória apóia-se na do comêço, absorve-a e amplia-se já num diapasão mais intenso.
No início da segunda fase do filme existe uma passagem onírica admiravelmente bem construída, à base de ricas imagens, desdobradas em movimentos de câmera ou eficaz justaposição por montagem se desenvolver a obsessão do herói. Trata-se do momento onde vem a a da procura da mulher perdida, aliada à antiga obsessão da queda, causa dela ter escapado de suas mãos. Aliás, uma das imagens do mencionado trecho de sonho – o corpo de James Stewart sobre um fundo branco - prevê a conjuntura do desfêcho: cai o segundo corpo e ele pára à beira do parapeito - tudo terminou, embaixo ou em cima, o vazio, o branco, e sobre a queda a acrofobia decidirá. Todavia, isso não interessa mais para o teor do entrecho e surge a palavra FIM.
Apreciar o domínio do diretor na condução de cada cena é descobrir a cada momento, não só o apuro artesanal elevado à máxima potência, mas também a original concepção de encarar diversas situações que recebem tratamento quase inusitado, praticamente. Numa sequência algo extensa e minuciosa, como aquela em que o detetive segue o automóvel de Madeleine, vemos a atuação do cineasta aliar-se em precisa sincronização com a do responsável pelo acompanhamento musical no consumar de uma solução sem precedentes. O critério de recursos é o mais simples: intersecção de planos de Stewart (quase em close) dirigindo e do automóvel verde de Kim Novak visto por trás. A repetição aparentemente enfadonha ganha em contextura justamente pelo grau forçado de lentidão que foi imprimido, a permitir, em paralelo, o paulatino prevalecimento da faixa musical, inserindo-se de forma decisiva e condicionando o desenvolver das imagens. Bernard Herrmann, também há muito colaborador habitual de Hitchcock, dá uma contribuição valiosa. Não apenas no trecho dos automóveis e sim durante tôda a metragem de "Vertigo". No exemplo da perseguição, entretanto, a sua capacidade criativa atinge o ápice. Não o mero e óbvio sublinhamento, mas a consciência de um complexo problema de reversibilidade entre fundo e periferia quando os planos visuais e sonoros substituem-se reciprocamente e propiciam a sugestiva consubstanciação de um estado contemplativo, que envolve tanto o protagonista quanto o espectador que ainda não é conhecedor de nenhuma chave elucidativa dos acontecimentos. E o clima dá perseguição vem na hora em que ele salva a mulher da tentativa de suicídio. Aqui começará a linha da tragédia na qual ficará atado. O ciclo se fechará num círculo maior. Kim cai em falso no princípio cairá de verdade no fim.
Não conhecemos o original da dupla Boileau-Narcejac, donde saiu o argumento, porém o roteiro não deixa de denotar um engenhoso sistema simbológico, entreligando as diversas situações focalizadas. E tudo em função de uma dinâmica de efeitos em consumação visual. A côr também participa dêsse jôgo de símbolos. O verde conota o carro de Madeleine com o vestido de Judy, o branco é o vácuo durante o sonho, enquanto as tonalidades mortas e escuras prescrevem as perseguições em subida onde a acrofobia intervirá.

A sequência mais espetacular de "Vertigo"'' se constitui naquela do par enlaçado trocando beiios, no apartamento de Judy. Utilizando os recursos da transparência, o diretor impele a câmera num demorado travelirig de trajetória oblonga, ao passo que os cenários entram em fusão, os do momento real – paredes, móveis e janela do quarto - com os da imaginação – instantes vividos anteriormente - mediante um reversível esquema de recorrências. As tonalidades difusas e sombrias, com predominância na modulacão do verde, fornecem a feição própria à ambiência. Uma sequência, sem dúvida, que faria inveja ao falecido Max Ophüls, numa das aplicações mais investivas do traveling até hoje realizadas.
A beleza de Kim Novak, muito bem aproveitada como atriz nesse filme, reforça o contexto da misteriosa atmosfera trágico-onírica do espetáculo, sendo ela o leit-motiv dos eventos. Em contraponto, qual um apelo da realidade de que Scottie não deveria fugir, a presença simpática de Barbara Bel Geddes, trivialmente espirituosa – um apanágio da desprezada estabilidade, ainda mais caricaturada nos óculos enormes usados por ela.
James Stewart tem aqui a sua melhor interpretação em películas hitchcockianas. Sempre expressivo no close-up, transmite com segurança a conjuntura de seu personagem, acompanhando com gesticulação exata um critério de reações contidas.
Os coadjuvantes pouco aparecem, não havendo, com a exceção de Barbara Bel Geddes, nenhum outro portador de papel mais incisivo no desenvolvimento da trama. O marido de Madeleine (Tom Helmore) desaparece de foco após a cens do julgamento e o crime então compensa. Tal consiste num fator acessório, da mesma forma que a possível inverossimilhança de algumas passagens, cuja falta de lucidação mais pormenorizada configura apenas uma necessidade irremovível de não estorvar a ação vetor do drama.
Em oposição a um processo posto em prática numa fita como "Festim Diabólico" - a ação contínua através da elisão do corte - "Um Corpo que Cai” é uma realização que, de acôrdo com os cálculos dos observadores do "Cahiers du Cinéma", apresenta no mínimo 780 planos, num découpage cada vez mais fragmentado. E se levarmos em conta ao mesmo tempo o virtuosismo do diretor, já seria o suficiente como garantia de um filme fascinante, pelo menos no que tange à periferia. No entanto, o impacto da obra é mais profundo: fundo e forma coadunam-se em dinâmica organicidade, compondo uma totalidade marcante. De Hitchcock ainda é facultado muito esperar. Essa derradeira amostra evidencia que entre os mais veteranos em militância na sétima-arte é o que detém maior grau de lucidez atualmente.
Não se pode terminar de falar em "Vertigo" sem chamar a atenção para Saul Bass, responsável pelos letreiros da fita. Uma obra-prima antecedendo a outra, são o lábio, depois o ôlho, as espirais, as côres, num ritmo visual extraordinário. Saul Bass é a melhor coisa que o cinema ofereceu ultimamente. Não somente a funcionalidade da arte aplicada em alto nível. É o ôlho da vanguarda para um futuro talvez nem muito longínquo.

Jornal das Letras
01/06/1959

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
Jornal do Brasil 12/05/1957

Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
Jornal do Brasil 16/06/1957

Ingmar Berman na comédia
Jornal do Brasil 30/06/1957

562 registros
 
|< <<   1  2  3   >> >|