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Ingmar Bergman

Além de um mestre perfeito no domínio dos múltiplos recursos do artesanato cinematográfico, Ingmar Bergman pode ser considerado, depois de Orson Welles, e ao lado de um Max Ophüls ou de um Hitchcock, como um dos maiores inventores em militância nêsses últimos dez anos de cinema.
É também, como o são, outrossim, Welles e Ophüls, um dos grandes barrocos da sétima-arte. Tal conceituação, frise-se logo, não se reporta a uma concepção mais estreita e vulgar do barroco: aprimoramento voluptuário e despido de funcionalidade da obra de arte. Em suas realizações, o barroco surge visceralmente incorporado ao organismo que alimenta o pulsar de efeitos sensíveis de uma totalidade que se projeta qual lídimo e autônomo objeto de um determinado critério de proclução artística. E, em seus filmes, via de regra, toda uma simbologia estilizada, em consonância com um dado processo de fabulação, denota um elevado índice de precisão isomórfica no uso dos elementos em relação.
Embora muitas das fitas do cineasta sueco esmiucem demoradamente diversas facetas dos dramas de seus personagens através das situações mais íntimas, êle não é um realista. Seu estilo foge dos esquemas daquela tradição, já bem solidificada no cinema, da constatação imediata, direta, por vêzes crua, de uma determinada maneira de viver, mediante qualquer conjuntura que se apresente. Não é um analítico e por conseguinte, o aspecto anedótico dos entrechos com os quais manobra, envolve sempre uma superposição de implicações, ficando abolido o descritivo do papel de última instância para a significação do que se passa na tela.
Ao contrário da maioria dos realizadores neo-realistas. Bergman jamais confere um cunho socializante em suas películas; está mais voltado para o indivíduo, tange o pathos, a crise de angútia do homem em certas contingências. Trata-se de uma natural opção do artista. Sendo fruto forçosamente do meio-ambiente, a medida de seu modo de perceber a realidade ocorrerá de acordo com os dados sensíveis que lhe fornece o tempo de comportamento. São evidentemente infinita as maneiras ele estar e o cinema, que, como diz Merleau-Ponty, propicia de imediato, e como nenhuma arte o pode fazer, o comportamento do indivíduo tem um vasto terreno onde operar, dispensando as apriorísticas rotulações temáticas - fator estéril em substancialidade dentro de qualquer contexto de formulação estética.
Moço ainda, o agora já famoso diretor sueco possui um filmologia extensa, sendo que três dos filmes de sua autoria, entre os que conhecemos, constituem obras antológicas, de grande envergadura: «Noites de Circo» (Gyrcklanas Afton), “Juventude - Eterno Tesouro» (Sommarlek) e «Sorrisos de uma Noite de Verão» (Sommarnatens Leende). Outro, «Uma de Amor" (En Lektion i Karlek), é uma pequena obra-prima no gênero da comédia. E, tanto «Quando as Mulheres Esperam" (Kvinnors Vantan), como “Monika e o Desejo” (Sommaren Med Monika), malgrado não alcancem o invejável nível qualitativo das já mencionadas, não deixam de ser películas de mérito, ambas marcadas por trecho de alto cunho inventivo na construção de várias sequências.
Bergman não é, contudo, somente diretor. Em boa parte de suas fitas, responsabiliza-se também pela elaboração do roteiro. Nessa função, colaborou em celulóides de outros realizadores e com resultados frisantes. Basta lembrar «A Tortura de um Desejo” (Hets), de Alf Sjoberg, filme que serviu justamente para chamar a atenção do mundo, na época do fim da guerra, sôbre o novel cinema sueco. Em «Eva», de Gustav Molander, percebe-se claramente a sua incisiva influência na confecção de algumas cenas, como aquela do sonho do protagonista, compassada pelo tambor do colega de quarto, provocando-o a seduzir sua espôsa - uma sequência insólita e inusitada, criando a impressão de um macabro divertissement.
A constante em sua obra - a tentativa de uma normalidade depressiva, a busca de· novos rumos e o caráter efêmero dos prazeres mais puros - tem sempre, no drama ou na comédia, o amor como veículo impulsionador a concretizar essa ânsia e, transfigurando o pathos, Bergman transporta o pequeno drama do homem comum às derradeiras consequências do grande trágico. Um método peculiar de valorizar o aspecto humano das questões, proporcionando ao impasse de uma conjuntura dramática do homem a intensidade que só êste rnesmo poderia avaliar. Essa uniformidade de pretensões pressupõe, destarte, uma precisa funcionalidade a todo aparato dos recursos empregados e, outro tanto, os personagens, adstritos a uma crescente dimensão do patético, assumem uma postulação de atitudes além dos limites permitidos na esfera de ação do realismo. A sua linguagem visual, de feicão cintilante, versátil com referência às mais diversas modulações rítmicas, assemelha-se a um carrocel de parábolas elipses confinadas todavia, no que diz respeito à harmoniosa presentificação de um todo, a princípios e/ou preceitos estruturais, longe portanto do apelo à gratuidade das soluções oníricas, dos arremedos da avant-garde ou as frívolas «originalidades”.
Um tal critério de estilização não o cingiu entretanto a um método único de trabalhar com a câmera, à eleição de um pressupôsto rítmo de fácil condução ao repisamento, à auto-repetição constante até a completa exaustão de um processo. Pelo contrário renova-se de obra para obra, saltando do drama para a comédia, da apologia feérica para a concentração intimista. Isso não representa um mero ecletismo periférico, subordinado às rotulações conteudísticas ou a uma espécie de versatilidade literária. É o cerne do problema formal atingido, são as múltiplas concepções de ritmo que podem sugerir os elementos de construção cinematográfica. Basta comparar "es .I e . de construção cinematográfica. Basta comparar “Noites de Circo” e “Sorrisos de uma Noite de Verão”.

Montagem

Uma tal versatilidade de soluções rítmicas, sempre eficazes, faz prever o domínio absoluto sobre a montagem. Cocteau e Orson Welles já disseram que um filme é feito mais com a tesoura do que com a câmera. Bergman também possui essa sensibilidade da tesoura bem refinada: a noção de como conferir identidade precisa ao jôgo de relações entre a matéria visual e a sucessão das tomadas.
Saber lidar com a montagem hoje em dia, evidendemente. não iniplica na simples e cega obediência às primeiras recentas eisenstenianas. Repetir atualmente a chave estrutural de películas clássicas, como “Encouraçado Potemkim» ou “Outubro”, é uma pilhéria, levando-se em conta o amplo desenvolvimento do acêrvo de elementos formulativos que de lá para cá vem ocorrendo na sétima-arte. Por outro lado, além de ser ridículo tentar restaurar no cinema a técnica do metrônomo, já há muito despresada na poesia, em contemporaneidade com o grande mestre soviético havia a figura de um Chaplin, por exemplo que elaborava suas fitas mediante processos bem diferentes. Afinal, “Aurora», «Luzes da Cidade, e “Outubro” são três obras-primas e cada um dos realizadores (Murnau, Chaplin e Eisenstein, respectivamente), concretizou com êxito uma intuição formal, três diversas concepções de ritmo, que não podem ser medidas e contrapostas entre si à base da regra do relógio, porque, como o diz Gisèle Brelet, «o ritmo não dimensiona um dado tempo fora dele próprio: porém, engendra o tempo no mesmo ato em que lhe confere medida. O ritmo é consubstancial ao tempo. (“Le Temps Musical”).
Eisenstein qualificou de modo decisivo um elemento cinematográficamente inestimável, básico, o corte. Todavia de “Potemkim” até hoje, uma série de outros elementos foram ganhando corporificação funcional no contexto fílmico: os movimentos da câmera, travelings ou panoramas, a côr, o som ruídos ou diálogos etc. Dai um encadeamento de efeitos, estribado nos recursos do corte abrupto, não é a única solução existente, ou melhor, trata-se de uma solução repassada, de imediata remessa às matrizes já devidamente incorporadas à atuação museológíca. No presente, montagem deve ser compreendida em caráter mais complexo, tendo em vista todos os fatores atuantes no desenvolvimento formal.
Em Bergman, o apuro da montagem está em perceber o calculado sincronismo que geralmente existe no desenrolar das sequências. Função inicial de nossa conjunção de sentidos para, posteriormente, estimular a perquirição intelectual na ordenação de métodos e recursos que presidiram um determinado esforço criativo. Difícil encontrarmos nele uma cena superflua e o controle sobre o índice de saturação é quase perfeito.

ESPELHOS E FLASH-BACK A POLIVALÊNCIA DE ESPAÇO E DE TEMPO

O uso do décor parece permanentemente subordinado a um estudado tratamento do campo visual. Aqui, a recorrência continúa na utilização dos espelhos traduz o escôpo de desdobrar o écran em dois ou mais planos a fim de forjar uma simultâneidade de ações-reações num mesmo espaço de tempo real. Então, em paralelo, temos a montagem dentro do quadro, o conflito, por justaposição, de dois ângulos de visão. Destarte, o trabalho de composição atende não apenas às solicitações do equilíbrio, mas a necessidade de facultar essa ambiguidade dimensional - a interrelação exata entre objetos e pessoas em foco para manêjo da profundidade de campo e do fracionamento espacial. Uma das derradeiras sequências de “Juventude”, em que a protagonista recebe em seu camarim a visita do mestre de dança, em traje de Copelius, e, mais tarde, do seu namorado, com um crescente fluxo de intensidade visual, por meio do emprêgo de espelhos e lâmpadas, constitui um exemplo significativo do fato. Igualmente, os espelhos modulam o rítmo dos interiores de algumas passagens do primeiro episódio de “Quando as Mulheres Esperam” que descrevem o encontro entre a mulher casada e o amante.
Outrossim, o flash-back surge nas fitas do cineasta sueco dotado de uma função eminentemente orgânica no critério de estruturação da obra. Sob o seu ponto de vista, a técnica da liberdade temporal é um recurso rico, possibilitando muitas variações no compensar das sequencias. O flash-back já não vem concebido no roteiro somente como uma solução de teor acidental, com o mero feito de encaixar alguma afluência da principal linha temática deduzível do entrecho. Em oposto: elemento básico de estrutura, no núcleo radial que regula o pulsar dos efeitos a serem desencadeados. Uma das mais pujantes alegorias do patético no cinema, é o trêcho de «Noites de Circo” quando um dos personagens recorda a cena do banho de Alma, a mulher do palhaço, frente ao regimento em manobras. Um impacto violento, anunciando o que irá acontecer com o protagonista quando, em presença do público, será surrado em pleno picadeiro pelo cínico ator que lhe seduzira a companheira.
Suficiente assistir a «Uma Lição de Amor” para ver como Bergman, mediante flash-backs descontínuoos, elide todo o aspecto teatral da trama e formula um ritmo admirável para a comédia satírica, sem ser necessário abdicar de um jôgo inteligente de diálogos que, entrosados noutro contexto rítmico, ou melhor adstritos a uma linearidade cronológica dos eventos narrados poderiam conduzir à literatura ou vair nos preceitos da ribalta.

A LINGUAGEM MALLARMAICA

“Sorrisos de uma Noite de Verão» é o filme onde o grau de cintilação da linguagem cinematográfica, em Ingmar Bergman, vai ao máximo nos requintes. E, com Mallarmé, estreita-se o parentesco. Não se trata apenas do barroco e do aparato alegórico. É especialmente a maneira análoga de apresentar um grande número de objetos com nítida função simbólica, despidos da intenção de referência descritiva à realidade imediata. Assim, no grande poeta, são as duas flautas do fauno, o cisne no gêlo, a cabeça de Saint-Jean e mais toda uma reincidência de espêlhos, cabeleiras, ondas, espumas etc. Com Bergman temos, nessa película, o violão ao qual está abraçado o seminarista, as suas roupas e sapatos cheirando mal (o ranço da virtude), o moinho na cena final, o véu que tomba da charrete, a estatueta com clarim, arauto da entrada do leito e do amor, o revólver, com o qual experimentam a pontaria o conde e a espôsa (também recorrência à idéia do
jogo). Também a invocação a Shakespeare, através do “Sonho de uma Noite de Verão», torna-se patente, a partir do título o aparecimento da lua e, principalmente, o tema do efêmero, cristalizado no diretor suéco pela obsessão ao têrmo sommar (verão), e que um dos personagens da peça, Lysander, traz à luz num verso: “so quick bright things come to confusion”.
Por outro lado, de maneira idêntica à concepção simbólica dos objetos, muitos personagens nos seus filmes, às vêzes de rápida aparição, assumem foros de entidade mítica: a velha anfitriã de «Sorrisos de uma Noite de Verão», Copelius e o tio da heroína, em “Juventude», o diretor do teatro e o palhaço, em «Noites de Circo», o estranho que segue o par, em “Monika e o Desejo».
A complexa totalidade de instrumentos e recursos convocados obedece a uma rigorosa disciplina do racionalismo formal, jornais se permitindo ao automatismo do encadear imagens sem nexo. A ambivalência de efeitos está condicionada aos eixos da organização, livre da tendência entrópica de um subjetivismo desenfreado. Nisso tudo ele também está em Mallarmé.
Atualmente, a importância de Bergman foi afinal reconhecida e êle pode ser considerado o maior realizador do cinema europeu. Começando com «Sorrisos» e juntamente com o «O Sétimo Sêlo», «O Segrêdo dos Morangos» e “No Limiar da Vida”, transformou-se no maior papa-prêmios dos festivais cinematográficos. Infelizmente, êsse reconhecimento foi algo tardio, pois algumas películas suas da fase antiga, de aparente importância, como por exemplo, «Fangelse» (Prisão), talvez nunca cheguem a possuir oportunidade de ampla divulgação. Resta, entre nós, a esperança nas atividades do Cinema de Arte, em seu campo, uma das grandes iniciativas de largo mérito cultural, digna do apoio de todos, e que já nos brindou com duas obras de Bergman, “Uma Lição de Amor» e «Juventude - Eterno Tesouro” e para o futuro promete a exibição do famoso “Sede de Paixões” (Torst).

Jornal das Letras
01/04/1959

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
Jornal do Brasil 12/05/1957

Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
Jornal do Brasil 16/06/1957

Ingmar Berman na comédia
Jornal do Brasil 30/06/1957

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