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Acossado um filme de vanguarda

Jean-Luc Godard é um crítico inteligente; um dos mais destacados da turma "delirante" do Cahiers. Realizou várias películas de curta-metragem, antes de se lançar à produção em longa-metragem. Contudo, A Bout de Souffle, a sua primeira incursão – com apenas quatro semanas de tournage, pode ser considerada um dos grandes trunfos que dão corpo e justificam a existência da nouvelle vague.
Um filme de inventor, um filme que formula novos esquemas de relações entre os elementos cinematográficos, na procura de plasmar um ritmo instigante, anticausal - um ritmo do comportamento em ação. Seria o critério relativo da mise-en-scene, em contraposição a uma visão absolutista até então imperante, segundo a proposição dos cineastas e exegetas da nouvelle vague, os mesmos que, com o apoio de Bazin, criaram a politique des auteurs. Entretanto, não se encontra ainda, no caso (relatividade x absolutismo), uma base filosófica por êles estabelecida a fim de situar, para os novos problemas de direção, essa dualidade e o respectivo critério terminológico.
Mas, a obra escapa dessas considerações especulativas. Acossado é, dentro da atual situação do cinema francês, a realização mais importante, logo após Hiroshima Mon Amour. E, sob determinados aspectos, descerra problemas não alcançados pela fita de Resnais. Assim, como Hiroshima, a dedução discursiva de uma história, aqui, em nada auxiliará na compreensão de seu sentido. A câmera testemunha os fatos, rodeiaos, delineia-os, porém não explica, não conclui – não está diretamente manejada pelo escritor ou pelo pensador. É cinema.
Alguns dos principais fatôres do processo acionado por Godard, fazendo resultar uma obra de choque, devido a seus efeitos originais.
1) a ruptura com uma concepção tradicional de continuidade, através, principalmente, do desprêzo para com uma idéia de sincronização imediata entre o corte e o diálogo. Tal dessincronização se verifica mediante uma espécie de distorção do método de correspondências paralelas para conduzir os dois elementos. Não existe, por assim dizer, uma rima entre ambos os movimentos: enquanto um dos personagens fala, um novo plano sucede sem indicar quebra de progressão do diálogo, ou então, ocorre um corte, de um plano, para outro, quase idêntico. Ao mesmo tempo, nem sempre se mantém êsse continuum do diálogo ou do monólogo: a uma pergunta, não sucede, imediatamente, um tipo de resposta esperado, dentro de uma lógica habitual de construção dramática, herdada do teatro ou do romance. As vozes, mesmo, chegam a se entrelaçar. Nesse ponto, o filme coloca diferentes perspectivas na aplicação dos conceitos de campo e contracampo.
2) -A movimentacão incessante da câmera, obedecendo também, não a uma sistemática prevista por um fluxo condutor de raciocínios, estribado num método narrativo aproirístico, numa demarcada metrificação, de acôrdo com as solicitações de fundo. A câmera move-se e traz sempre uma descoberta. A câmera em ação abre um campo fenomênico. Aqui, existe, sem dúvida, uma diferença fundamental da concepção dos travelings de Hiroshima Mon Amour: neste, os movimentos são mais demorados, via de regra, e, por outro lado, seguem, entre si, um jôgo de relações mais ordenado, à base do esquema de retas: as longas penetrações a fundo, contrabalançadas pelos largos panoramas em direção lateral. Em A Boot de Souffle, a dominante das tendências é a circular e nem sempre convergente ao movimento dos atares no interior do quadro. É uma fita que traz o paradigma do movimento.
3) - o tratamento conferido ao modo de atuacão dos intérpretes. Rompe-se com o analítito-dedutivo, o compor um tipo em normas prefixadas. Nesse ponto, a autonomia da sétima-arte raramente se manifestou com tanto vigor. Os atores estão, não estão para representar, mas representam para estar. Daí, a aferição não causal de um ser pelo estar - a técnica do comportamento. Os personagens se dão a conhecer através do filme e, não, em virtude de rótulo generalizante para um determinado conteúdo abstrato - não há um conceito anterior. O personagem não evolui classicamente, seus atos e palavras são, à primeira vista, contraditórios porque não se definem em têrmos anedóticos, de narração. Um jôgo de contrastes e conflitos forjando um realismo pela ambiguidade.

* * *

Destarte, Acossado é um filme muito mais realista do que outros e dispensando uma reincidência calculada nos detalhes. Demonstra, inclusive, um prolongamento natural do neorealismo italiano, que não ocorreu, e isso, porque os neo-realistas fundaram uma revolução sem a mesma consciência do instrumento que a ideológica. A sua naturalidade e o seu cotidiano tinham ainda uma vinculação narrativoliterária que películas, como A Bout de Souffle, se encarregam de abolir. E, aliás, se o seu protagonista não traduzisse um comportamento margirnal, sem determinante sócio-econômica, a aproximação seria bem mais nítida.
Mencionar o ator obriga a ressaltar o extraordinário resultado obtido mediante a concepção de miseen-scene de Jean-Luc Godard sôbre Jean Paul Belmondo e Jean Seberg. Aquêle, especialmente, nos proporciona um rendimento invulgar, fora do alcance comum: um sêr que se forma e lateja num clima eminentemente motovisualsonoroso de ação e reação.
O seu êxito e o também recente naquele Diva, em Hiroshima, demonstram o trabalho do ator submetido a novas perspectivas estruturais, onde os virtuosismos individuais cedem lugar a uma visão mais global, onde o intérprete não equivale mais ao estático transmissor de caráter e pensamento de um sêr prédefinido, porém se impõe num estar condicionado a uma necessidade formativa em seu campo apropriado. Enfim, onde sujeito e objeto não mais estão, um para o outro, delineados em compartimentos mutuamente estanques, mas sob a alça de uma dialética, do transformismo. A um comportamento predominantemente de reações, mais característico do teatro, o cinema propõe, em tôdas as suas virtualidades, um comportamento predominantemente de ação – o que não foi logo compreendido pelos adeptos ou inimigos da era sonora, quando esta principiava então.
Acossado evidencia a perfeita funcionalidade e, não só, o fator imprescindível do elemento diálogo no cinema, enquanto êste último, pelo menos, se compromete como um veio expressivo do comportamento em ação. É assistir ao impressionante tour de torce, na sequência decorrida no quarto de Patrícia: cêrca de vinte minutos num cenário restrito, com os personagens movendo-se e falando constantemente sem que se sinta sequer uma ameaça de ingresso em diapasão monótono. O equilíbrio é proporcionado na conjugação com a câmera inquietante, sempre rodopiando no escasso terreno e surpreendendo gestos, atitudes ou expressões em sucessão instigante.
Existem, sem dúvida, sequências marcantes na película:
1) - o método telegráfico pelo qual é visualizado o assassinato do polícia de motocicleta, quando chega ao local onde Michel se ocultara: um tiro fulminante e, logo, noutro plano; tomada elevada e distante dêle a correr pela campina, em mangas de camisa - e o rodopiar longínquo e eufórico dos braços;
2) - o momento em que Michel, em silêncio, olha demoradamente a foto de Humphrey Bogart e procura imitar um dos cacoetes principais do grande ator: passar o dorso do polegar pelo lábio. Êsse trecho não deixa de possuir certas premissas simbológicas, em contraposição à quase totalidade da fita, porém se insere com admirável agudeza e vale no sentido do instante em que surge e pelo seu tratamento sêco e altamente eficaz.
3) - A sequência final, quando o protagonista, após receber o tiro desfechado pelo policial, corre, contorcendo-se, até a esquina, cai para morrer, silêncio quando os detetives e Patrícia rodeiam seu corpo, o silêncio pesado, expressivo, as caretas risonhas e a palavra final, dirigida à ela: dégueulasse.
O acompanhamento musical é outro elemento bastante revitalizado: a constante de um piano modesto, soando baixo, porém de grande efeito no conjunto de relações onde se infiltra; ou um sincopado forte de instrumentos de percursão e sôpro, destacando-se na passagem em que Michel e Patrícia circulam longamente com o carro. O responsável por êsse setor é Martial Solal.
Um determinado tom satírico, às vêzes, se escapa. É o caso da cena onde, enquanto Michel segue Patrícia, anuncia-se a passagem de Ike e De Gaulle: não os vemos, mas apenas seus batedores de motocicleta em pujante alarido. Uma técnica sutil do humor, lembrando, por analogia, os automóveis correndo rigorosamente emparelhados, em Mon Oncle, de Tati. Todavia o maior preito que Acossado rende a um outro cineasta é o tratamento de uma espécie de euforia rebelde, tão afim ao Jean Vigo, especialmente de Zéro de Conduite. O ponto culminante dessa hommage é aquêle rádio tocando vigorosamente, ao mesmo tempo que Michel e Patrícia agitam-se sob os lençóis.
A Bout de Souffle não traz uma mensagem delimitada, um conteúdo previamente incorporado a uma idéia diretiva. O que nos dá a nossa percepção poderia ser, através de uma análise posterior de implicações, uma pequena odisséia de um anti-herói de nossos tempos. Um desajustado, mas, do qual, nunca se explica (nem é necessário) donde vem, como se formou e para onde iria. Um antiherói porque, talvez, na época de hoje, seja difícil um tipo de herói individualista, apoiado na ação física: as grandes emoções são coletivas. E essa run for action, desesperada, feérica, mas isolada, impõe, como obsessão, uma guerra desordenada à ordem social. Tal é o comentário de um cartaz no muro, com o qual o rapaz cruza acidentalmente em sua deslocação perene: vivre dangereusement jusqu'au bout.

Jornal das Letras
01/08/1961

 
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Revista Leitura 30/11/-1

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Jornal do Brasil 17/02/1957

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