jlg
cinema

  rj  
Um filme revolução

Orson Welles esperou dezenove anos por outro que surgisse, a brandir com uma fita drasticamente revolucionária: "Cidadão Kane" teve, portanto, sua réplica quase um quarto de século depois. A revolução agora é "Hiroshima Mon Amour"; o autor, Alain Resnais.
O que representa essa realização se consiste numa larga reformulação estrutural para o filme, quando o emprêgo de alguns elementos é atacado de maneira completamente diversa do que, até então, ocorria. Uma nova dinâmica de relações, reativando a capacidade de impacto em têrmos mais profundos. O seccionamento capital de qualquer recurso filiado a um terreno descritivo-anedótico: compreender o cinema em sua essência de um complexo imagem-som-movimento - um conteúdo de formas, não a serviço de uma clicherie temática pré-estabelecida, mas, ele mesmo, em sua propulsão rítmica, um universo concreto de sugestões.
Aqui livre de uma estática vinculação à rigidez conceitual início-meio-fim ou do parti-pris que traduz um retôrno a desgastadas receitas artesanais de um tipo de cinema já ultrapassado, fora de uma realidade contingente de materiais - principalmente o batido ideal amadorístico ainda ligado ao velho ângulo de visão, muito bem rotulado por Moholy-Nagy como o do machine-gun-cut (a metralhadora de cortes) - aqui, "Hiroshima" se desata de uma normalidade conformista e desaba como uma avalanche. Uma película que consiste em aguda revelação à sensibilidade: como disse Merleau Ponty, "percebemos mediante a conjunção de nossos sentidos", e, daí, encontramos uma obra de imediato e violento impacto, rompendo um saturado para-brisas de expectativas no campo do intelecto, por nos trazer uma experiência formal inteiramente nova.
No problema que propõe, Resnais não foge à realidade; absorve todo um legado de recursos já cristalizados orgânicamente em obras de vulto e devolve-os noutro vibratum de espaço-tempo. Um perfeito isomorfismo rítmico-visual, som e figura - um máximo de primazia sensível em razão de ser justamente um filme do instante, onde cada sequência significa uma vivência autônoma preconizada por um diálogo de situações, que se auto-reformam numa sucessiva projeção de perspectivas em sinestesia circular. Presente, passado e futuro se anulam mutuamente, desprendendo a fixação romântica gráfico. Todavia, o transplante de materiais ocasiona a ingerência de Joyce, de um tempo, para a totalidade se oferecer, em circuíto reversível, como um auge de intensificação do primeiro, do presente – o que propicia o momento em seu máximo de vitalidade. Constitui também, e justamente, uma dialética sentimento X pensamento: o que atua, o que importa e o que a memória já filtrou, o que se armazena num passado. Daí, uma normalidade paradoxal: uma fita do sem sentido em têrmos absolutos, uma anulação à metafísica - um fluxo de impressões que a mente vai tateando e ao qual ela mesma já propiciou uma dimensão diferente daquela conferida pela realidade concreta, sensível, que anteriormente o havia plasmado. Tudo se passa, nada se passou, ou nada se passa, através do tudo que já passou; cada experiência vivida modifica, na área do pensamento, as precedentes. As formas sucessivamente dão nova contextura ao fundo, porque êste vive exatamente em função da existência delas.
Em "Hiroshima Mon Amour", não existe uma história discernível na velha tradição literário-discursiva: a atriz francêsa e seu amante, o arquiteto japonês - "eu sou Nevers e tu és Hiroshima". Aqui, talvez, o único ponto discutível da película: uma pista redundante, por sua impostação literária? Uma explicação chave-de-ouro? Ao contrário do habitual, onde muitas vêzes uma série de efeitos simboliza uma história, um fato, no caso de Resnais é a própria história que se esvazia num entrecortar e simboliza um tudo ou nada - um jôgo de oposições, uma dialética de contrastes. Nada acontece, segundo a velha concepção; ou tudo acontece, de acordo com a própria experiência com uma nova formulação.
O esfôrço em dar significado a coisas que fogem à sua implicação. O absoluto não está na afirmação ou na negação, porém, sim, no conflito constante de significados. Esta é a única permanência, multiforme, e daqui nasce uma dinâmica também permanente: a relatividade. E, nisso, a frase final - "eu sou Nevers e tu és Hiroshima" – equivale à única concessão a um simbolismo.
Uma fragmentação contínua em busca de um equilíbrio completo, final, que brota da justa posição das partes. Não há dúvida que Resnais sai de um princípio eisensteniano, levando-o, contudo, às últimas consequências, pois transporta-o a uma questão estrutural não somente de forma, mas de fundo-forma. Não existe um argumento no sentido clássico, previamente fixado e que compreende uma narrativa. Não há um motivo, portanto, e sim um entrosamento de motivos, isoladamente heterogêneos um ao outro, que se reunem para implicar uma duração essencial que não é adjetiva a nada que seja exterior a ela mesma.
A técnica do realizador não deixa de, evidentemente, denotar uma linhagem de obras antecedentes, ao qual ela rarefaz, com os elementos destas, noutro sentido de criação. Sob os diversos aspectos concretos, a invenção está presente em:
a) - a utilização do flash-back. Não só a quebra de uma lógica do relógio e uma consequente acronologia tão bem desenvolvida por alguns diretores do cinema moderno, desde "Cidadão Kane". Resnais joga com linhas de sequência não paralelas, isto é, visando propositadamente a um desnível de correspondências cunhadas pelo senso tradicional. Assim, em tôdas as cenas nas quais a protagonista conta ao seu interlocutor os eventos decorridos em Nevers, por época de sua paixão adolescente pelo oficial alemão, as imagens jamais obedecem à ordem dos acontecimentos narrados por ela, - inverte-os ou modifica-os em seu teor sucessivo; ainda mais: omite uma ou outra passagem e faz com que o que ela diz não esteja ou já tenha sido ilustrado anteriormente, ou então, surge uma imagem bem antes de se começar a rememorar um dado trecho que lhe seja correspondente. Êsse método de desconexões forja um efeito bastante análogo aos do "stream of counciousness" joyceano, embora o processo formativo seja mais a fim aos de John Dos Passos, cujos romances não se desenvolvem tanto a partir da palavra-forma pura como no caso do escritor irlandês. Aliás, Dos Passos é quem justamente denomina determinadas passagens de seu importante romance "1919", de ôlho cinematográfico. Todavia, o transplante de materiais ocasiona a ingerência de Joyce, porque o problema se resolve a partir de uma dialética motovisual e sonora, cujas premissas são os diversos tipos de montagem que se assemelham, no cinema, à montagem interior de um "Finnegans Wake": associação de sílabas, segmentos de palavras ou partículas sonoras, que criam um núcleo semântico polivalente.
b) - o emprêgo dos diálogos de modo completamente antifigurativo a uma situação. Os dois personagens falam em recitativo uniforme, como a demonstrar uma extemporaneidade e, ao mesmo tempo, inserir uma noção de ausência. Porque, como já se frisou, não há um leit-motiv tradicional, a história ilustra um permanente diálogo de situações que não se resolvem num complexo ambiental geográfico-naturalista. Na moeda corrente de "Hiroshima Mon Amour", não encontramos uma análise do comportamento. A Gestalt separa com muita propriedade a "ambiência geográfica" do "campo do comportamento". Aqui, não temos um complexo de solicitações para modular determinados comportamentos. São faixas de reações que se entremeam em tonalidades diversas, fazendo com que se projete essa totalidade extemporânea que não possui Nevers nem tão pouco Hiroshima como ponto de referência geográfico de particularizar um temperamento, através de uma seriação concatenada de estímulos. "Hiroshima Mon Amour", pelo contrário, generaliza, abstrai uma idéia do comportamento, quando afirma e reitera o primado sensível, por intermédio daquêle instante que equipara tôdas as espécies de sêres humanos: o momento pré-reacional, o entre estímulo e reflexo.
Destarte, tendo seccionado o campo do comportamento, o filme abandona um critério de transfiguração icônica em sua imediata fundamentação pictórico-realista - já é uma destruição do processo fabulístico. As imagens permanecem como agente de uma outra estrutura de relações que tende para a depuração formal de um substratum inorgânico. A imagem perde quase totalmente uma condição de representatividade alegórica, reduz-nos a interpretação ao que ela mesma se apresenta em caráter de objeto concreto. Então, um conjunto de planos-objetos que decorre para a eliminação, pelo menos parcial, do poder da catarse. Uma transformação radical da função dos elementos, faz variar a qualidade da sensação: substitui-se a emoção pela estesia pura.
Um crítico francês, Eric Rohmer, observando com bastante acuidade essa característica básica do processo de "Hiroshima" - uma reconstituição da realidade, a partir de um método de fracionamento - considera Resnais como o primeiro cineasta moderno e classifica a realização como um filme cubista. Não há dúvida que existe a imensa afinidade com o cubismo, mas, e para ficar apenas no terreno de analogia com as artes plásticas, iríamos mais longe numa tentativa de precisão e poderíamos dizer que se trata de um cinema collage: fragmentos heterogêneos que se acumulam num nexo estrutural:
c) - planos que parecem pertencer a uma película somam-se a outros aparentemente de fitas diversas e assim ocorre com close-ups, travellings ou sequências inteiras. Uma superposição de conflitos, na acepção de Eisenstein, porém multiplicados em uma pluralidade de esferas, inclusive a semântica, cuja desconexão superficial leva, no entanto, a uma unidade superior. A memória se mescla com fatos reais e há sempre um critério de transposição abrupta. Fatos da imaginação ou da memória ou fatos da realidade: presentificação objetiva, sem procurar fornecer uma tonalidade emotivo-sentimental às cenas do entrecho, mesmo porque não há um entrecho tradicionalmente concebido - um desenvolvimento circular de imagens, sem um definido princípio-meio-fim e, nisso, a película de Resnais está quase prestes a cumprir a observação de Michel Butor, a respeito de "Finnegans Wake": "um romance que pode ser lido a partir de qualquer página".

* * *

Seria ocioso mencionar elogiosamente o trabalho de cada membro da equipe de Resnais. Tudo se confina a um elevado índice de eficiência, desde a fotografia de Sacha Vierny e do japonês Takahashi Michic, passando pela música de Fusco e Delerue e indo até à atuação dos intérpretes Emmanuelle Riva é Eiji Okada, êstes atendendo perfeitamente à sua função, conferindo ao recitativo um tom grave, neutro, com boa dicção.
"Hiroshina Mon Amour" é uma instigação para o futuro. O marco que representa pode ser fincado sem o menor receio. Resta a espera dos frutos provenientes de um aproveitamento ainda mais evolutivo de seus elementos, assim como da outra revolução imediatamente anterior, "Citizen Kane", encontramos, na técnica de Resnais, o dedo de Welles ainda, principalmente no que se reporta à concepção das tomadas. O ciclo inventivo se refaz e se multiplica.

Jornal das Letras
01/06/1960

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
Jornal do Brasil 12/05/1957

Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
Jornal do Brasil 16/06/1957

Ingmar Berman na comédia
Jornal do Brasil 30/06/1957

562 registros
 
|< <<   1  2  3   >> >|