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Ford cinema vivido

Um levantamento sôbre a existência de uma personalidade como a de John Ford, seu sentimento do mundo e concepção das coisas, identifica-se, entrosa-se isomorficamente com o seu próprio instrumento de trabalho: o filme. O mesmo ocorre, cada um dentro de seu mood, com um Chaplin, um Hawks, um Walsh ou o mais novato Anthony Mann. A mensagem fordiana não existe em têrmos de apriorística formulação intelectual dos fatos que nos rodeiam - o pensamento digerindo a experiênda, filtrando-a numa dirigida unidade de postulados e, consequentemente, preambientando os valores formativos de uma estética motovisual. Um grande número de inventores e mestres da sétima-arte corresponde a tal maneira de atuar e, não há dúvida, malgrado os malentendidos metafísicas - literários que permitem uma assimilação deturpada da função imagem x movimento, a sua contribuição é de melhor média qualitativa devido à mais sadia opção pelo racionalismo de construção - uma consciência ampla do instrumento. Portanto, se um Orson Welles traz, em sua obra, uma conotação de seu temperamento com o espírito do teatro elizabethano, um Bergman elabora, via imagem, tôda uma dialética apoiada numa conjunção freud & misticismo, um Eisenstein, a tradição de uma literatura épica, um Max Ophüls, a exarcebação romântica, John Ford, por seu turno, apenas pode girar em tôrno de si mesmo: o cinema. Suas contradições são aquelas somente facultadas pela intensa pragmática - a intuição puramente empírica, em estado bruto, alheia à camuflagem teórica. São contradições mais absolutas: um ou outro filme inconsequente quebram uma cadeia de realizações maiúsculas, um rigoroso exercício de estilo compensa uma concessão sentimentalóide a tipos e situações evocativas, autobiográficas. A falta de um aparelhamento intelectual impede a defesa contra a imersão numa desabusada ausência de rigor. Contudo, a sabedoria primitiva, o conhecimento de corpo-a-corpo com o objeto que lida constitui o fator básico para a vigência do artista. E, por isso, até hoje, o diretor irlandês ensina cinema a uma plêiade de colegas que leram Marx, Bernanos ou mesmo o Marquis de Sade; aos porta-vozes de abstrações já devidamente rotuladas em dicionários de sufixos, aos pretensos revolucionários de idéias estáticas que não brotam de uma dinâmica pela imagem, aos que, via um realismo-conteudista, colecionam indagações.
Com mais de quarenta anos de atividade, com uma já consagrada contribuição, principalmente como um dos criadores do gênero mais tipicamente cinematográfico - o western - Ford, apesar do cansaço e um mais constante afrouxamento do rigor ("Asas de Águias", "The Long Grey Line", "O último Hurra") ainda marca pontos altos, ainda contribui com obras de indiscutível pêso. A penúltima foi "The Searchers" (Rastros de Ódio) ; agora é "The Horse Soldiers" (Marcha de Heróis).

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O entrecho de ação, a épica, ainda permanece como a parte mais autêntica na filmografia fordeana, embora a que talvez seja a sua melhor película e uma das maiores em tôda a história do cinema - "The Informer" (O Delator) - se constitua numa adaptação do romance de O'Flaherty. Porém, estabelecendo-se uma linhagem para o gênero dentro de sua obra - de "The Iron Horse" a "The Horse Soldiers", pode-se, mesmo nas fitas menos significantes, como "Rio Grande" ou "She Wore a Yellow Ribbon", constatar uma concepção dinâmica do meio de expressão, a mencionada sabedoria intuitiva que engendra uma ação eminentemente visual e que denota um poder de síntese, mediante a concentração dos elementos essenciais num só plano, capaz de rivalizar com as longas e calculadas elocubrações de um rigoroso esteta, a fim de atingir o mesmo alvo.
Existe ainda o humor fordeano, peculiar, inconfundível - um misto de grotesco, caricatura e nonsense, às vêzes, em quase pequenas fábulas, um burlesco do absurdo. E, em poucas ocasiões, êsse humor retornou com tanta agilidade e vigor como agora em "Marcha de Heróis", proporcionando à épica um colorido todo particular, de modulações insólitas - refresca-se a anedota numa contextura original, de frisante cunho pessoal, à maneira do diretor, e livra-se de cair no surrado currículo de louvaminhas a façanhas heróicas. Todos os personagens, pràticamente, participam no clima de hilariedade, desde os vividos pelos astros principais, John Wayne (sempre dono absoluto de sua posição, ao encabeçar os filmes de Ford) e William Holden, passando por Constance Towers e a campeã de tenis Althea Gibson e até aos coadjuvantes especializados que marcam tipos bem característicos e originais. E as situações que se enfeixam nessa trilha do humor também se revestem sempre de uma inventiva constante. Homens e momentos: o sargento que gosta de um trago, o ajudante do médico ou alguns dos veteranos na tropa; o jantar no solar de Hannah, a lição nos dois malfeitores que conservavam prêso o juiz sulista ou então o exame médico dos homens do batalhão. Nisso tudo, não se deve esquecer a contribuição do excelente roteiro da dupla John Lee Mahin e Martin Rackin que também produziram a fita para a Mirish .
O filme em si, em sua fundamentação estrutural, é aquela admirável noção de um tempo virtual da qual Ford muitas vêzes se revela possuidor: 119 minutos intensos sem o menor deslize rítmico, um conjugar de situações, pela imagem, naquela clássica concepção sua de unidade para o crescendo. Clássica, mas jamais acadêmica. Ford, hoje em dia, não sendo mais um inventor, numa referência à acepção de um problema estrutural, permanece, quando acerta, um mestre perfeito. Serve àquela veIha tradição de um cinema sadio - impacto direto, sem maiores complexidades. E dapta-se dentro de seu estilo habitual, aos enriquecimentos materiais da sétima-arte, isto é, côr, poderio sonoro, tela panorâmica etc., com incrível facilidade. Arrebanha novos elementos, com isso, e coloca-os em função a revigorar a tradicional concepção. A guerra de Secessão; uma pessoa, um grupo ou um exército, de um lado ou do outro, tem determinada missão. Quantos espetáculos já foram realizados nesse sentido? E "The Horse Soldiers" não é apenas mais um. É uma película diferente.
É uma película diferente: o fator formativo qualifica um impacto; não se observa também a rotulação inconsequente: tipos de comportamento, em situações repetidas, devassados através de novos ângulos. O ôlho da câmara critica. E, então, a atmosfera das referidas situações não é mais a mesma, o fator ambiência surge com forte poder catártico. E, para tudo isso, o silêncio, o ruído, o enquadramento, a sucessão das sequências; algumas, tornam-se antológicas, uma verdadeira lição de um mestre que, cada vez que a repisa, confere-lhe um sabor diverso: a emboscada e o tiroteio na pequena cidade sulista quando chega o trem de munições.
A plástica. Lembra-se do antigo colaborador permanente, Joseph August, e de seu extraordinário trabalho em "The Informer". Veio a côr e um ensaio admirável da dupla Winton Hoch-Archie Stout no famoso "The Quiet Man" (Depois do Vendaval). Aqui, entretanto, o trabalho novamente com a côr de William Clothier nada fica a dever ao da mencionada dupla. Para todos os matizes, um domínio absoluto dos recursos, uma perfeita adequação ao tonus emocional das variantes dramáticas da trama. Elementos de composição impecáveis, uma compreensão perfeita do fator paisagístico, apesar de óbviamente filiada a moldes tradicionais, cujos apêlos mais arrojados vão ao leve impressionismo. Todavia, sempre a dinâmica de uma adequação, de uma identificação com o teor de cada linha do entrecho e não o estático cartão-postal.
Essa vivacidade, essa euforia visual que poucos cineastas sabem criar, ainda é um apanágio de Ford ligado à épica - uma épica pura, livre de exarcebações sentimentais que muitas vêzes, em filmes evocativos à sua terra natal, se espalham de modo incontrolável. Uma contradição porque o problema não é o de compreender o espírito de tais realizações, a inspiração que animou o diretor, mas, sim, o de êle devolvê-las em têrmos de formulação cinematográfica. A inoperante inacessibilidade é a contradição entre o que há em matéria de ritmo e dinamismo em "The Horse Soldiers" e de apatia e expletividade em "The Last Hurrah", o que há de rigor e consciência em "Rastros de ódio" e o que há de inconsciência, displicência e inconsequência no incrível "Asas de Águia". Ford, porém, não tem a formação de um Eisenstein, de um Orson Welles, o seu artesanato provém de um longo palmo a palmo puramente empírico e imediato com o seu métier - a experiência, em bruto, se consiste no elo entre o que sente e o que faz. A medida é a própria vivência e o que a memória arrecada; tem domínio do ofício, é artista, contudo não um esteta, na acepção mais integral do têrmo. Mesmo na atualidade continua a produzir mananciosamente e daí o patente desequilíbrio de nível qualitativo entre as fitas de sua última fase. "Marcha de Heróis" corresponde ao lado positivo: mostra um ápice de sua lucidez artesanal e continua a deixar-nos sempre em espectativa de suas próximas realizações. Constituirá sem dúvida um dos maiores filmes dêste ano.

Jornal das Letras
01/04/1960

 
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