"Cais das Sombras" (Quai des Brumes) é a primeira obra da considerada grande fase de Marcel Carné, que vai desembocar em "O Boulevard do Crime" (Les Enfants du Paradis).
Um romance de Pierre Mac Orlan serviu de base para a adaptação cinematográfica do poeta Jacque Prévert, habitual colaborador de Carné em seu período de fastígio. Se, como no caso de "Les Enfants du Paradis" ou de "Les Visiteurs du Soir" (Os Visitantes da Noite), a concepção de Carné se entrosa perfeitamente com o universo prevertiano, devido ao teor dos argumentos, o clima, a ambiência e os cenários, no exemplo de "Cais das Sombras" a autonomia de algumas situações de legítimo cunho prévertiano nem sempre salutar em têrmo de função, de isomorfismo.
A tese do processo molar levantada por Wertheimer, o isomorfismo, que Décio Pignatari tão bem definiu como "a luta de fundo e forma em busca de identificacão", envolve todo o aparatus para apreensão de um índice de organicidade da obra de arte, mediante o estudo e observação dos elementos que o artista emprega. Um desajuste na afinidade sensível entre êsses elementos em relação, provoca naturalmente menor solidez à consequência final de um critério formativo. Em "Quai des Brumes" alguns personagens possuem feição demasiado literária em função de um complexo de ambiência que a própria narrativa formula. Vagabundos, gigolôs, malfeitores, meretrizes, enfim tôda uma fauna do "baixo-mundo", move-se amiúde por demais consciente da impostação literária do próprio personagem, arrematando sequências ou diálogos com frases-feitas ou tiradas de brilho. É verdade, por outro lado, que o filme tateia um fluxo de diapasão alegórico que, entretanto, não se consuma definitivamente em sua densidade de atmosfera, permanecendo afeito a uma linha de desenvolvimento vinculada à tragédia, à opção fatalista proveniente do ângulo de visão pessimista do diretor.
Carné, assistente e discípulo de Feyder, parece ter herdado do convívio com o diretor de "La Kermesse Heroique” uma apreciável noção de unidade estilística, uma disciplina de tonus notoriamente impecável, não permitindo, assim, a nenhum momento, impressão de insegurança quanto ao que realmente deseja fazer.
Devido, talvez, a essa qualidade, a fita oferece uma admirável densidade de clima que apenas se apaga no desfêcho. Essa consistência de atmosfera é obtida através de recursos artesanais - uma certa sapiência em visualizar o sombrio, tanto no sentido concreto, quanto no aspecto simbóIico, operando totalmente ad marginem dos diálogos de Prévert que fogem e regressam num vaivém em espiral em tôrno do corpo da ação fílmica. Os cenários de Trauner, também constante colaborador de Carné, bastante válidos, aliam-se ao trabalho de conferir fôrça à ambiência.
Sem dúvida de que a inspiração de Prévert incidiu violentamente na confecção de duas obras máximas como "O Boulevard do Crime" e "Os Visitantes da Noite", e, ao mesmo tempo, a sua contenção provavelmente explique outra obra de envergadura, "Trágico Amanhecer" (Le Jour se Lève), pode-se admitir que "Quai des Brumes", sem a intromissão de um Prévert demasiado eloquente, poderia ter atingido melhor capacidade de impacto. Embora, é forçoso reconhecer, a realização não resiste tanto ao tempo como "Trágico Amanhecer", dotado de ritmo bem mais vivaz, de um critério de construção dramática bem mais firme em seus efeitos, quando justamente menos pretensioso e mais econômico.
Jean Gabin dá boa contextura ao seu personagem: um desertor que chega ao cais à procura de um meio de fuga e a quem a fatalidade cortará, subitamente, a consumação de seus planos, acrescidos e ampliados com a descoberta inesperada de um amor puro. Contudo, Michèle Morgan, encarnando uma espécie de flor da inocência num ambiente sórdido, leva-lhe a palma no terreno da interpretação, compondo seu tipo com apurada sensibilidade expressiva, especialmente em alguns close-ups, quando atende ao máximo à solicitações do papel. Pierre Brasseur, como o covarde malfeitor que alveja Gabin no final, e Michel Simon, surgem à frente dos coadjuvantes, mantendo o habitual desembaraço cênico, atendendo bem ao diretor em algumas passagens de maior vigor.
Tribuna da Imprensa
02/10/1959