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"Paths of Glory" - Kubrick no caminho da glória

Se, dentre as películas que preencheram o ciclo de pré-estréias do festival do cinema americano, organizado pelo Museu de Arte Moderna, apenas três delas ultrapassararam o nível do espetáculo meramente razoável – “Bom Dia Tristeza” (Bonjour Tristesse), de Otto Préminger, “Amor na Tarde” (Love in the Afternoon), de Billy Wilder, e “Glória Feita de Sangue” (Paths of Glory), de Stanley Kubrick - a última se consubstancia uma autêntica obra-prima, uma realização perfeita e definitiva.
A revelação do talento e da capacidade de Stanley Kubrick, ocorrida entre nós o ano passado, através da apresentação de seu dois filmes de longa metragem anteriores, “A Morte Passou por Perto” (Killer's Kiss) e “O Grande Golpe” (The Killing), já servia não só rara encará-lo como a esperança mais sólida entre os diretores da nova geração de Hollywood, como também para colocá-lo, de imediato, no meio dos cineastas que compõem a primeira linha do cinema ianque na atualidade: Aldrich Huston, Kazan, Wilder, Hitchcock, sem esquecer a contribuição esparsa de um gênio como o de Orson Welles e a irregular de um mestre como John Ford, ou então Fritz Lang.
No caso dêsses dois filmes citados, poderia-se ainda denotar com extrema facilidade a absorção muitas vêzes funcional de boas influências, embora noutras em caráter mais rebarbativo. “A morte passou por perto”, que, até a cena da bailarina, vai num ritmo e coloração de verdadeira obra-prima, é a mais desigual, onde, a par de excessivos resquícios de avangardismo na consumação de alguns detalhes, encontramos soluções diretamente aproximadas ao modêlo de certos filmes anteriores, “Punhos de Campeã”, “O Gangster”, e, ao mesmo tempo, pairando sôbre o todo, a marca da concepção de ritmo espacio-temporal de um Ingmar Bergman, cuja influência, e o próprio Kubrick declarou em entrevista ao “Sahiers du Cinema” que conhecia toda a obra do diretor sueco, envolve também a estruturação de “O Grande Golpe”. Esta, porém, se constitui numa fita superior à precedente, já dotada de maior unidade, uma criação excepcional mesmo no gênero, em que também figura como matriz da concepção temática o clássico “The Asphalt Jungle”, de John Huston.
Destarte, estava plenamente justificada a ansiedade com que era aguardada a derradeira realização do nóvel “metteur-en-scène”, especialmente porque também, além de continuar contando com o apoio do produtor James Marris, que inverte o capital proveniente de seu lucros na televisão com empreendimentos cinematográficos sérios, o ator Kirk Douglas demonstrou-se enormemente interessado em contribuir financeiramente ao projeto de levar à tela a versão da novela de Humphrey Cobb, bem como de interpretar o papel do protagonista. E os prognósticos otimistas a respeito da evolução de Kubrick, que se faziam constante, mais do que efetivado, ultrapassaram qualquer espectativa, mercê uma obra antológica, de qualidades invulgares, e que já revela no seu responsável principal o elevado grau de maturidade alcançado em breves e marcantes saltos qualitativos. “Paths of Glory”, vasada num estilo sêco, preciso, sem a menor concessão em instante nenhum ao simple exercício experimental pode ser considerada uma película inteiramente do jovem diretor, deveras totalmente despojado de influências incisivas nos métodos e recursos convocados para a formulação da linguagem cinematográfica à qual recorreu. Enfim, se encontrarmos na linhagem de sua descendência, delineada em especial nos dois primeiros filmes, os nomes de Huston, Welles, Bergman, Wise ou Opphuls, algumas características do expressionismo, isto indica que êle “colheu no ar a tradição mais viva”, no sentido de imprimir os autênticos processos formativos de um cinema puro, uni-indivisível como expressão própria da sétima-arte, de dentro da qual emerge como um do principais inventores da atualidade, ao utilizar os elementos advindos dessas constantes mais válidas com o permanente escopo de renovar os critérios de elaboração rítmica, orgânico ou visual.

UM FILME SOBRE A GUERRA MAIS DO QUE UM FILME DE GUERRA

Em “Glória Feita de Sangue”, as cenas de combate propiciadas pelo entrecho surgem apenas através de duas passagens, ambas, aliás, construídas de modo magnífico: o pequeno episódio da patrulha de reconhecimento, quando um dos soldados morre por culpa da pusilanimidade e covardia do tenente Roget (Wayne Morris), que chefiava a incursão; o trecho descrevendo a infrutífera tentativa da companhia, sob o comando do Coronel Dax (Kirk Douglas), de tomar o “formigueiro”, como era mencionado um bastião do inimigo.
Todo o resto da narrativa se reporta aos bastidores do palco da ação bélica: as trincheiras, onde os soldados aguardam ordens e que o tempo passe, e o salões, por onde passeia a oficialidade. Aqui, nesses bastidores, é fabulado, de maneira sêca e incisiva, o contexto dos elementos temáticos. É a guerra e como, de um modo ou de outro, nasce ou desenvolve o absurdo de tôdas as guerras e as situações mais particularizadas que êsse mesmo absurdo enquadra. Por detrás dos tiros que troam e dos corpos que se amontoam, o lúdico jôgo das manobras, o militarismo exacerbado, e as vidas humanas submetidas à troca de influências ou à política de vaidades. E o teor nobilizante dos disticos criados a fim de dignificar uma campanha acaba se diluindo num marasmo de inconsequências.
O cinismo e a irreverente falta de escrúpulos do general Broulard (Adolphp Menjou), aliados ao irresponsável orgulho e vaidade do general Mireau (George MasReady), moverão um impossível ataque dos soldados ao pôsto do inimigo. Irremediavelmente batidos, os homens recuam de novo até as trincheiras e serão acusados pelo crime de “covardia”, pelo qual um soldado de cada companhia, previamente escolhido, responderá à pena de fuzilamento, como um exemplo aos colegas. Contra tudo se rebela inutilmente o Coronel Dax, que comandou o dito assallo e será derrotado pela subserviência de um tribunal militar, a que compareceu como defensor dos réus. No final, entretanto, na hora em que assiste a cena entre a jovem alemã e os soldados franceses dentro do café, perceberá que a fraternidade humana é um valor que, incólume, permanecerá sempre ao largo do despotismo, das humilhações ou dos interêsses de cada um. O que ele vê, se consuma livre da deturpação de qualquer emblema racista, moral ou religioso - uma janela simples, alheia a qualquer prisma pertinente a um critério de exceção.
Uma realização corajosa e autêntica, a primeira consequência da segunda, porque os esquemas de fabulação se estribam em fatôres dados próximos ao nosso alcance e não adstritos à ambiência de uma cidade imaginária ou a longínquos tempos faraônicos ou babilônicos. Não que os limites do problema estejam apenas afeitos às possível contingências que atravessou o exército francês em determinada fase da 1ª grande guerra - o foco sai do particular e se espraia em sua significação total no sentido do geral.
Nesse ponto, a ousadia e valor de Kubrick são bem maiores que os de um Aldrich em “Morte sem Glória”, quando a amplitude temática ficou circunscrita a um caráter episódico, isto é, com punição aos culpados garantidas no desfecho, ou de um Zinneman (“A Um Passo da Eternidade) ou um Brooks (“Sementes de Violência”) que vão ao meio do caminho e se rendem a imposições tipo o crime não compensa ou tudo que vocês viram já passou. No que tange a um tal aspecto, êle, com “Paths of Glory”, atinge as últimas instâncias como o outro Aldrich, de “A Grande Chantagem”, como o Billy Wilder, de “A Montanha dos Sete Abutres”, e como o Benedek, de “O Selvagem”.
Em função disto, talvez, é que Kubrick tenha abandonado algumas feições típicas em seu estilo para adotar um ritmo conciso e áspero, atacando com os momentos de alta voltagem dramática de uma forma ríspida e enxuta ao mesmo tempo, sem a menor divagação visual ou de jôgo cênico antecedendo êstes momentos. Tudo rápido e econômico qual subcolor de uma reportagem sem concessões, vibrátil e incisiva, pois incisivo é o realizador no trecho em que um dos condenados, soldado Arnaud (Joseph Turkel), esmurra o padre após ter-lhe mostrado seu Deus, uma garrafa de vinho, incisivo quando êle na hora do fuzilamento é amarrado ao poste com padiola e tudo e também beliscado na face, incisivo na mesma cena também de fixar os planos do soldado Ferol (Timothy Carey) com a sua barba e o ar de um cristo contrafeito, soluçando no ombro do padre, ao renegar uma imolação absurda que seria, de qualquer forma, desmentida pela cena final. Mais incisivo ainda no famoso corte do plano parado para o travelling do salão com os oficiais valsando (quando vem à memória o fato de que Kubrick é, entretanto, fã nº1 de Max Ophuls), na discussão entre o coronel e o general Broulard ou então no instante em que acaba a fila.
Numa obra que se reveste de tal unidade, de um tão engenhoso equilíbrio artesanal, seria possívelmente uma irreverência procurar selecionar determinados trechos. Contudo, dado o sabor antológico que apresentam, à fôrça com que conferem dimensão inusitada às passagens em foco, torna-se lícito destacar o longo travelling, no qual o protagonista percorre a linha da trincheira antes do combate, onde a pujança expressiva das imagens dos soldado recostados atinge uma qualificação insuperável dentro de sua função. É, talvez, o mais poderoso achado existente na maneira de visualizar um dos aspectos da guerra . O outro, trata-se da magistral sequência em que o homem do café lança a receosa jovem alemã aos olhos dos soldados e a voz desta, entoando uma canção de sua pátria; começa pouco a pouco a emergir do vozerio dominante, para afinal ser acompanhado por todos. A beira do lugar comum, o regisseur cria uma das cenas de maior fôrça catártica já oferecidas pela sétima arte.
O tratamento visual, através da extraordinária fotografia de George Krause, enriquece consideravelmente o espetáculo, assim como a utilização precisa e funcional dos instrumentos de percussão por Gerald Fried, no acompanhamento musical. Este último, aliás, vem trabalhando com Kubrick desde “Killer's Kiss”.
Kirk Douglas, contido a mão de ferro (outro grande mérito de Kubrick), tem um dos melhores desempenhos de sua caneira. Dos coadjuvantes, é difícil extrair algum nome para o primeiro plano, já que todos atuam com larga eficiência e correspondem in totum às solicitações de seus papéis.
Proibida na França, e motivo de sérios incidentes na Bélgica, “Glória Feita de Sangue”, todavia, deve ter um lugar assegurado entre as obras mais representativas do cinema moderno. Dela, disse o próprio Zavattini: “é uma lição para nós”.
O filme arrebatou também, e por ampla margem, cinco dos prêmios oferecidos pelo MAM dentre os nove aos quais concorreu: melhor fita, melhor direção, melhor fotografia, melhor screen-play e melhor coadjuvante masculino.

Jornal das Letras
01/10/1958

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
Jornal do Brasil 12/05/1957

Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
Jornal do Brasil 16/06/1957

Ingmar Berman na comédia
Jornal do Brasil 30/06/1957

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