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O boulevard do crime

O APÍCE na carreira de Marcel Carné, "O Boulevard do Crime" consiste também num dos ápices da linguagem cinematográfica – uma dessas obras-primas que, de raro em raro, surgem e encerram um determinado ciclo de experiências e tentativas não integralmente cobertas de êxito.
Talvez o mais francês entre os filmes franceses, envolve essa realização um tipo de interrelação dramático-visual em sua arquitetura que, abafando ou mesmo intimidando qualquer incursão variante a posteriori, somente permitiu encontrar um paralelo de perfeita consumação artistica através de Ingmar Bergman e seu "Sommarnatens Leende" (Sorrisos de uma Noite de Verão), aparecido muitos anos depois. E, assim como a película sueca usou um dos prismas shakespereanos na função de ponto de referência de um critério de efabulação, no caso "Sonho de uma Noite de Verão", Carné e Jacques Prévert tinham da mesma maneira, como o fez notar Moniz Vianna, em seu artigo de 1949 sobre "Les Enfante du Paradis" (O Boulevard do Crime), saído de outro conceito do grande teatrólogo inglês, contido em "As You Like It": "o mundo é um palco em que os homens e as mulheres são atôres".
Quem assistiu aqui a essa fita na época de seu lançamento, há cêrca de dez anos atrás, poderia firmar um certo receio a respeito de sua consistência atual, não apenas baseado na passagem dos anos, mas, e principalmente, pelo fato de que, nessa retrospectiva do cinema francês, ela ressurgiria em sua versão integral, constando de mais de três horas de projeção e dividida em duas partes: "Le Boulevard du Crime" e "L'Homme Blanc". Tal receio, entretanto, vem por terra. Não só a obra mantém a mesma pujança e vigor, como a ampla metragem original, tornando mais claras algumas facetas do entrecho sem, por outro lado, embotar a contextura rítmica, reforça indiscutivelmente o caráter de solidez da realização.
A invocação a um nexo e/ou aspecto de teatralidade tanto como motivo de êxito, quanto como razão de fracasso, não possui cabimento. O artista funda seu pensamento em formas. Se "Les Enfants du Paradis" foi consumado através dos recursos da sétima-arte, se o espetáculo decorre numa tela, é somente o cinema, com toda a implicação de seu artesanato próprio, o único responsável. Qualquer obra de arte coloca inapelavelmente um problema de ritmo e é impossível formular um complexo rítmico de ordem teatral, atuando eficazmente no écran, quando um das elementos-chave para esse ritmo de ribalta está ausente: a presença fisica do ator. Toda realização cinematográfica frustrada que atende pela denominação restritiva de "teatral" é aquela que, para cujos propósitos estruturais, se ressente da falta de um importante elemento de acionamento dinâmico que apenas no palco faculta-se obter.
Lícito seria chamar de teatral, como uma denominação adjunta, reportando-se a um gênero de filme. Porque, do mesmo modo que Bergman, no recente "Sorrisos de uma Noite de Verão", usando propositadamente na periféria a marivaudage de uma ação da ribalta, elide a trama própria ao teatro e constrói um núcleo de ações essencialmente cinematográfico, Carné, 14 anos atrás, identicamente, pincelando superficialmente as constantes do entrecho num mesmo esquema de tonalidades pertinente à Commedia dell' Arte, elabora uma linguagem que, decomposta as exteriorizações de seu aparato temático, implica decisivamente as virtualidades de uma formulação essencialmente cinematográfica. O resto confina-se, em especial, a discusses com respeito ao índice conteudístico, que, tratando-se de uma abstração, nada tem a ver diretamente, em planos de contraste e/ou oposições, com a operação e consequente resultado concreto da obra.
Tudo consubstancia-se num problema de isomorfismo. Noutro. contexto formulativo, a validez da existência e do comportamento de personagens como Garance. Baptiste, Lemaitre ou Lacenaire sofreria evidentes modificações, o decantado excesso de diálogos poderia mergulhar na ausência de funcionalidade. A funcionalidade implica um jogo de relações entre elementos, não está mumificada num dado abecedário de "como fazer cinema", por exemplo. Principalmente o cinema que, com sua cada vez maior riqueza de materiais, possui, em consequencia, larga pluralidade de elementos; pelo menos, por ora, enquanto nele ainda é válida a feição de transcedência, o critério de propulsão icônica que gera o velho conceito de arte como expressão.
Portanto, embora o ator e o diálogo sejam na sétima-arte elementos não básicos, secundários como ponto de partida para uma elaboração estrutural, não será medindo se a duração das falas, a intensidade do uso desses elementos, que tornar-se-á possível um juízo sobre a propriedade de sua utilização. Como arte é forma, antes do processo intelectual de aquilatação, existe um temrpo incontornável de aferição sensível. A obra é um todo que não se mede através da soma de suas partes. Dai, desligar o som de "O Boulevard do Crime", a fim de verificar se ele resiste, seria uma aberração como pesquisa da importância dos dados formais em função. Como a moderna psicologia da forma, a Gestalt, permite provar, os elementos não são partes que se ligam ou se se sucedem mediante uma associação atomística. A sua inter-adequação perfaz a função do todo por meio de uma conjunção molar.
Por certo, "Les Enfants du Paradis" não é realização de um inventor, mas de um mestre (seguindo aqui novamente o fecundo critério de Ezra Pound, posto por ele em prática na literatura, com vistas a caracterizar a obra de um escritor). Constitui uma fita que representa a consumação máxima, o aproveitamento maturo de uma série de experimentos com o artesanato sob a égide do complexo câmera-tesoura. Não é uma obra-prima importante dentro do aspecto da renovação de formas na arte cinematográfica, como, quatro anos antes; o foi "Cidadão Kane", de Welles - a maior obra-prima de um inventor que provavelmente a história do cinema registra. Carné, na época, o mestre perfeito, o estilista invulgar ("Quai des Brumes", "Le Jour se Lêve", "Les Visiteurs du Soir" e "Les Enfants du Paradis") não viria a influenciar radicalmente nenhuma película de extrema importância através de "O Boulevard do Crime". Num caso desses, a influência opera somente no terreno dos parentescos literário-anedóticos e, a fita surgida posteriormente poderá tornar-se mais importante do que a anterior já que o cinema, em essência, nada tem a ver com a literatura. Isso não exclui uma outra espécie de importância assinalável a Camé, ou a um David Lean, por exemplo. Afinal, no fundo, o objetivo maior de todas essas buscas e pequenas ou grandes invenções é chegar à possibilidade de filmes como "Les Enfants du Paradis" ou "Le Jour se Lève", “Oliver Twist" ou “Brief Encounter", "Sorrisos de uma Noite de Amor " (Bergman mestre nessa, inventor noutras), "Citizen Kane" ou "Touch of Evil" (Orson Welles sempre o grande inventor e, ao mesmo tempo, mestre).
O conjunto de personagens dessa obra máxima de Carné, ressuscitada pela festival do MAM, estão inseridos numa linha de ação adstrita à fabulação-matriz vida/palco. Viver é representar e a recíproca é verdadeira. Destarte, os tipos humanos possuem uma impostação inobjetavelmente válida em todo o seu aparato de comportamento literário. Eles "funcionam" porque os atores representam propositadamente não somente personagens, porém personagens que, consciente ou inconscientemente, também representam. A ambiguidade vida-arte está presente, ou em estado latente à cada passagem, Baptiste, pierrô, intelectualizava a vida e perde, de início, o amor de Garance que simplificava a vida. Lemaitre, o ator, trazia da ribalta os meios de triunfar objetivamente na representação no palco da vida e, na experiência com esta, tornava ao palco e lá enriquecia a sua representação de ator: quando conseguiu sentir ciúmes de Garance sentiu que era capaz de viver Otelo. E Lacenaire, de todos os personagens de Prévert, talvez o mais fascinante, é, em paralelo, o mais. ambíguo. De um lado, como o notou Moniz Vianna no mencionado trabalho, o delírio de grandeza e a consequente frustração que se resumirá na escollha entre o carrasco da província e o da cidade. De outro, não tão especificamente quanto Anton Wallbrook e Peter Ustinov, nos filmes de Max Ophüls "La Ronde" e "Lola Montez", respectivamente, é o meneur du jeu, o teatrólogo que não escreve as suas peças, mas fá-las viver, que comenta os eventos da narrativa e conduz o desfecho de algumas passagens, como o momento em que, abrindo a cortina do terraço, mostra, ao conde e a Lemaitre, Baptiste e Garance que se abraçam, concluindo de maneira decisiva a história que reservara para o conde e criando motivo de duelo entre este ultimo e o ator, vítimas do ciúme ("que são de todos e as mulheres de ninguém", conforme o disse Lemaitre a De Montray). Contudo, Lacenaire, resolvido a optar, antes que seja tarde, por essa derradeira concessão que pode fazer a si mesmo, vai aos banhos turcos e assassina o Conde De Montray antes da hora do duelo e senta-se para aguardar a polícia e, por conseguinte, o carrasco de Paris - uma sequencia admirável, na qual todos os movimentos do crime são apenas traduzidos no ruído de água e pela transformação refletida no rosto do companheiro de Lacenaire, que empalidecia ao ver sangue.
O ritmo da película corre em uniformidade sem mácula. Carné varia o emprego dos planos com bastante senso de equilíbrio para uma coadunação entre a intensificação dos recursos tonais e as linhas de evoluções dramática. Dois close-ups da cara branca de Baptiste em dois momentos de dialogação, por exemplo, quebram plasticamente o compasso linear de duas cenas e incidem tonalmente como reiteração simbólica do personagem e antevisão de suas respostas. Assim também na admirável sequencia em que ele executa no palco a pantomima de pierrô e, de súbito, pára a representação ao assistir nos bastidores ao seu equivalente drama real, quando divisa Garance e Lemaitre (Colombina e Arlequim) em colóquio. E o grito de Natalie (Maria Casarès), que por seu lado também participava da situação, desperta-o.
Coroando o brilho de espetáculo, a cena final, absolutamente antológica, temos, em efeito de contrastes, a euforia do carnaval e ·Barptiste, em mangas de camisa, sufocado por uma legião de pierrôs brancos, procurando por Garance que se evola numa carruagem.
Nunca o trabalho do diretor tão bem se entrosou com o de Prévert, autor do roteiro e diálogos, como em "Les Enfants du Paradis". O êxito de "Le Jour se Lève" é, em parte, devido a uma contenção do quase permanente colaborador de Carné. Aqui, pelo contrário, ele espalha seus pensamentos e personagens com bastante liberdade e o ajuste fica perfeito, sem sacrifício do rjtmo, de uma necessária organicidade contingente. E os atores correspondem in totum, conferem a dimensão almejada a seus papéis, consumando o espraiar de um generoso núcleo de simbologia contido no argumento. Arletty (Garance), Marcel Herrand (Lacenaire), Jean-Louis Barrault (Baptiste), Pierre Brasseur (Lemaitre), Maria Casarès (Natalie), Louis ·Salou (Conde De Montray) rendem o máximo e "O Boulevard do Crime'' talvez seja o filme onde tenha-se ido mais longe em propiciar autonomia ao intréprete sem que o cinema abdicasse, Em oposto, trata-se de um clásslico da sétima-arte, a obra de um domínio completo de artesanato num paradigma de função, no momento em que todos os recursos cinematográficos utilizados jamais deixam transparecer, à primeira vista, a sua intencionalidade; adequada adjetivação estrutural a uma expressão definitiva, quando o processo intelectual de construção jamais se sobrepõe ao efeito sensível.

Tribuna da Imprensa
10/10/1959

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

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Jornal do Brasil 17/02/1957

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Robson-Hitchcock
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Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

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