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O toque Hitch, uma arrepiante e bem-humorada visão do mundo

Num ensaio publicado há tempos - As Serpentes e o Caduceu -, Alain Resnais procurava definir as duas vertentes básicas do cinema, ou seja, realismo e fantasia, estabelecidas desde o início pelos pioneiros da assim denominada “sétima arte”: Lumière e Meliès. O primeiro abria as portas para a tendência do documento; o segundo, para aquela da ficção. Desnecessário dizer que Alfred Hitchcock incorporou-se plenamente a esta última e de maneira muito pessoal.
Morto, agora, aos 81 anos, ficará como um dos maiores em matéria de invenção, peripécias com a câmera, noção de timing para efeitos de narrativa motovisual & sonora e elaboração de efeitos no sentido de detonar uma característica. E há também o famoso toque, a torná-lo inconfundível, tal como seu antecessor, Ernst Lubitch. Foi o mestre do suspense e conseguiu aliar duas coisas multas vezes conflitantes: criatividade e sucesso imediato de bilheteria. E foi assim também um dos primeiros cineastas a juntar o seu nome ao dos atores nos cartazes de propaganda e nos letreiros das marquises dos cinemas.
Muita gente pousada no preconceito dos grandes conteúdos, desprezando o primado da invenção, poderá, em meio a muxoxos, alegar que ele era tão-somente um profissional do entretenimento, do divertissement, um expert em sustos desfechados sobre as plateias. Seria até um escândalo mencionar o seu nome junto ao de outros do quilate de Chaplin, Eisenstein, Murnau, Ford, Fellini, Kubrick, o próprio Renais, etc, etc. Mas, talvez raros como Hitch hajam refletido a ontologia do que se entende com: “arte cinematográfica”. Enquanto isso, os tais preconceitos já haviam ocorrido em muitas outras modalidades de manifestação estética, sempre envolvendo boa parte dos inventores, quer dizer, aqueles que desencadeiam um novo processo, que elaboram novos elementos para a estruturação das obras.
Com todos os altos e baixos de sua extensa filmografia, Hitchcock traduziu o espírito do cinema. E é o principal representante daquilo que, a nosso ver, constitui de fato o “gênero por excelência”: o thriller. E, não, o western.

O mestre do thriller

A versão tradicional de que o western consiste no “gênero por excelência” acabou resultando, em paralelo, num mero problema de ordem temática. Isso porque a natureza do plot e seus componentes - cowboys, índios, revólveres, cavalos, brigas, tiros, correrias, etc. eram pretexto para a montagem de aceleração na permuta de imagens, do pipocar de planos. Davam ensejo ao que se preconizava como o ideal do ritmo cinematográfico, em contraposição àquele do teatro. Porém só isso; o gênero estava condicionado a algo em vinculação aos signos do universo verbal. Além de tudo, posteriormente, o então chamado “western psicológico” viria a desmentir a teoria. Enfim, tudo pode ser cinema, mais puro ou menos puro, dependendo da funcionalidade do timing, da presentificação do relacionamento dos fatores significantes. Aquilo que Moholy-Nagy denominou como “a metralhadora dos cortes” não representava condição sine qua non para a aferição de valores. Senão, o que seria de um Renoir, de um Bresson, de um Antonioni?
Já com o thriller - a emoção gerada pela forma - ocorre o contrário. Só o cinema, com os seus elementos de linguagem, poderia propiciar o advento do gênero. E estamos falando em quantificação de recursos, em maior intensidade. É evidente a existência de suspense, de Agatha Christie a Edgar Allan Poe, ou no teatro. Mas o veículo gerador de tensões não é o mesmo com relação ao que se passa na tela. Em suma, uma questão de tecnologia. O 2001, de Kubrick, por exemplo, jamais poderia ser feito no 3º Mundo.
Nessa tecnologia, Hitchcock surgiu como mestre. E inventou muita coisa. Antigos críticos e ensaístas do Cahiers du Cinéma e, logo após, cineastas de primeiro plano da Nouvelle Vague, como é o caso de Godard, Truffaut, Chabrol ou Rohmer, colocaram-no em pedestal e também escreveram livros sobre sua obra. Era, ao mesmo tempo, uma espécie de mitificação do artista, e dessacralização dos grandes conteúdos. Hitchcock, como poucos, soube demonstrar que o inferno da arte (ou como se queira chamar o cinema) está lotado de boas intenções. Caso contrário, todos seriam criadores, ou seja, a velha história de uma ideia na cabeça e uma câmera na mão.
Disse Hitch há muito tempo, aliás, com modéstia e, talvez, num sentido de ironia: “O melodrama é a única coisa que consigo fazer”. Porém, se formos examinar vários filmes seus, como Vertigo (Um Corpo Que Cai), The Wrong Man (O Homem Errado), I Confess (Tortura do Silêncio), The Birds (Os Pássaros) ou The Trouble With Harry (O Terceiro Tiro), veremos que não ficou apenas no leit-moi-tiv do melodrama. Em Vertigo - seu maior filme no pisca-pisca da história do cinema -, consehue, sem ser discursivo, sair do thriller e entrar na tragédia pura, como observou Moniz Vianna. No caso de The Wrong Man, muitos críticos - e com razão - chegaram a falar em Kafka. Em I Confess, uma questão ética (o segredo ouvido por um padre no confessionário) banhou o espetáculo. Em The Birds, atingiu uma perquirição metafísica, driblando a lógica. Em The Trouble With Harry, vieram vários estudiosos a alegar que não era mais tão-somente em técnico, mas um “autor” (consoante a teoria do autor, elaborada pelos franceses nos fins da década de 1950, que distinguia entre duas modalidades de cineasta). Em suma, pode-se falar numa obra mais recente, como Topaze (Topázio), onde um entrecho de espionagem conduz cruamente à constatação da miserabilidade das conveniências políticas.
“Eu sou” - disse Hitch -, “pode-se dizer, como um pintor que pinta flores. É o modo de tratar as coisas que me interessa. Mas, por outro lado, se eu fosse um pintor, diria: só posso pintar aquilo que contêm uma mensagem”. A manifestação óbvia, simples, encerra sutileza via metáfora e correlação de aparentes heterogeneidades. É a permanente troca de estímulos entre fundo e forma ou vice-versa. Além de um ou outro argumento de sua própria autoria, ou de poucas obras de autores intelectualmente prestigiados, como John Steinbeck (Lifeboat - Um Barco e Nove Destinos), Joseph Conrad (Sabotage - O Marido Era o Culpado), Somerset Maugham (The Secret Agent - O Agente Secreto) ou Noel Coward (Easy Virtue), filmou geralmente adaptações de autores praticamente desconhecidos ou tidos como comerciais, como Daphne du Maurier (Rebecca, The Birds, Jamaica Inn - A Estalagem Maldita). Não havia o primado da grande literatura (sem desmerecer os grandes filmes baseados em grandes obras da prosa ou do teatro). Parece uma atitude destinada a afirmar o compromisso cinematográfico. E o que se pode dizer é que o mestre do thriller ficou cinematograficamente ininfluenciável, pelo menos no tocante a uma reação imediatista de assimilação de processos.

A ópera hitchcockiana


Como assinalaram Eric Rohmer e Claude Chabrol, em Hitchcock (no livro da série Classiques du Cinéma - Éditions Universitaires, 1957), com Rebecca (A Mulher Inesquecível), datada de 1940, “o Hitch touch tornou-se visão do mundo.” Por coincidência, essa produção de grande sucesso marca o ingresso do cineasta em Hollywood. Ou seja: o mundo da tecnologia tão afim com a obra, embora, em seu período britânico, já existissem componentes de realce em sua filmografia, como The Thirty-Nine Steps (Os Trinta e Nove Degraus) ou The Lady Vanishes (A Mulher Oculta).
Mas, foi em Hollywood que a avalancha de amostras do “gênero por excelência” se precipitou. O que era aparentemente comercial, lugar-comum, estereótipo, mero melodrama ou até plaisanterie sem maiores consequências, deu asas à plena criação, de catarse e pathos, com o molhos incessante de humor, requinte, enfim, savoir faire. De uma pretensa gratuidade inicial que impelia ao entrecho quase nada ficava de inconsequente. A não ser aquela gratuidade essencial que caracteriza toda a obra de arte. Fitas mais importantes ou menos importantes, mas todas enriquecendo os elos da inovação. A surpresa das sequências, como as rimas-surpresa dos artesãos do verso, de John Donne a Noel Rosa.
O virtuosismo, o tour de force, deixou inesquecíveis e inúmeras passagens da ópera hitchcockiana, como se fossem um dó de peito, um vocalise, um mi natural numa ária de espetáculo lírico. Basta recordar alguns hits:
1 - o assassinato em Foreign Correspondant (Correspondente Estrangeiro), com o revólver escondido dentro de uma máquina fotográfica;
2 - Cary Grant perseguido, no deserto, por um avião, em North By Northwest (Intriga Internacional);
3 - o assassinato da moça, fotografado através das lentes dos óculos caídos no chão, em Strangers in a Train (Pacto Sinistro);
4 - Janet Leigh, sob o chuveiro, recebendo as punhaladas através da cortina do box e o sangue escorrendo pelo ralo, em Psycho (Psicose);
5 - o ataque dos pássaros à cabina de telefone público, em The Birds (Os pássaros);
6 - o lento e tenso roubo do cofre realizado por Tippi Hedren em Marnie (Confissões de uma Ladra);
7 - A sequência onírica, visualizada por Salvador Dalí, em Spellbound (Quando Fala o Coração);
8 - James Stewart na lenta passagem em que segue o carro de Kim Novak, pelas ruas de San Francisco, onde um clima irreal, desligado, é acentuado pelo acompanhamento musical de Bernard Herrmann, em Vertigo (Um Corpo que Cai);
9 - nesse mesmo filme, o protagonista, que sofre de vertigem de alturas, tentando duas vezes impedir o suicídio da mulher que salta para o solo.
Em tudo, a alta voltagem dos efeitos. E, como orquestrador, sempre exigiu o máximo de know-how. Grandes técnicos trabalharam com Hitchcock, ajudando na concretização e lapidação de ideias e projetos. Na parte musical, nomes como os de Dimitri Tiomkin, Bernard Herrmann, Franz Waxman, Alfred Newman, Hugo Friedhofer, Miklos Rozsa e Charles Previn. Na fotografia, Jack Cox, Hary Stradling, Bernard Knowles, Rudolph Maté, Ted Tetzlaff, Lee Garmes, Jack Cardiff, e Robert Burks. No tocante ao roteiro, temos Frank Launder, Sidney Gilliat, Robert E. Sherwood, Thornton Wilder, Ben Hetch, Raymond Chandler, Maxwell Anderson e Ernest Lehman. Em paralelo, seria ocioso relembrar o elenco de astros e estrelas famosos que passaram pelo crivo da câmera de Hitchcock. Vale lembrar, sim, que foi também um fabuloso diretor de atores, desde os protagonistas, atravessando os coadjuvantes e chegando até as “pontas”. “Pontas” das quais ele próprio fazia questão de participar, como se estivesse conferindo um “toque” de marca registrada às suas fitas.

O cinema por excelência

Voltando à teoria de Resnais, quanto às duas serpentes, o erro de muitos observadores engajados em compromissos morais (que nada têm a ver com aqueles, estéticos) seria o de desejar ver ou entrever o realismo. Nadar como Lumière, quando o mar é de Méliès. Fala-se em psicologia barata, no que se refere ao freudianismo de filmes como Marnie ou Psycho (este último, até em decorrência do título). Fala-se em amoralismo e, até, com razão. Mas, isso representa uma redundância. A arte, assim como a natureza, é fundamentalmente amoral. Como dizia W. H. Auden, em seu poema Oxford: “And nature com only love herself” (e a natureza só pode amar a si própria).
Não há complexo de culpa nem a mauvaise conscience de Sartre - os maiores inimigos do distanciamento crítico e da imaginação criadora. A fantasia de Hitchcock é altamente instigante, no momento em que sempre evidenciou as potencialidades do cinema. Procurando sempre ser um inventor, de acordo com o conceito lançado por Ezra Pound, tendo em vista a poesia, conseguiu ter até grandeza quando falhou redondamente, como é o caso de Rope (Festim Diabólico), quando tentou pôr em prática uma ideia de ação contínua, ou seja, uma fita onde, além da imutabilidade do cenário, empregava um sistema de narração sem cortes. Aliás, suas experiências - mais bem-sucedidas - envolvendo filmes com cenários quase imutáveis, embora não tão sujeitos ao princípio da ação contínua, surgem em Lifeboat (Um Barco e Nove Destinos) e Rear Window (A Janela Indiscreta). Este último constitui um dos exemplos de suspense em crescendo mais bem dosados, dentro daquela fórmula de tensão ascendente: um homem, imobilizado, com seu binóculo, fica da janela assistindo ao que se passa no prédio vizinho, até que vê um crime e é a única pessoa capaz de identificar o criminoso. E este, sabedor da testemunha, virá, no final, procurá-la com as más intenções de praxe.
Em decorrência da inovação, a sua influência no terreno do thriller alastrou-se no correr do tempo. No cinema inglês e depois, principalmente, no cinema francês - sem falar nas ramificações em outras paragens -, pode-se citar o nome de alguns diretores com obras sob o crivo hitchcockiano: Edouard Molinaro, Claude Chabrol, Stanley Donen, a dupla Frank Launder-Sidney Gilliat, Carol Reed. E, para culminar, uma homenagem da nova geração à sua obra, surgiu High Anxiety (Alta Ansiedade), um admirável filme-paródia de Mel Brooks, com a sua história a se desenvolver na base da montagem de reconstituições das grandes sequências de Hitch.
Hitchcock: o cinema por excelência.

Jornal da Tarde
10/05/1980

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
Jornal do Brasil 12/05/1957

Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
Jornal do Brasil 16/06/1957

Ingmar Berman na comédia
Jornal do Brasil 30/06/1957

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