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Camerini-Rotaié

Quem assiste ao ciclo retrospectivo do atual festival do cinema italiano, promovido e organizado pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna, e, forçosamente, "descobre" o cinema peninsular, fica obrigado ao típico ato de contrição de um desconhecimento, quase que completo, da efetividade da sétima-arte naquêle país, durante seu período mudo e, também, no logo após, isto é, o início da fase dos talkies.
Não se trata apenas de "Cabiria", propondo, em 1913, uma série de soluções, inclusive na própria área do expressionismo - o claro-escuro, o décor transfigurante - a serem, posteriormente, adotadas e, naturalmente, melhor adaptadas, num forçoso evoluir da compreensão e de várias concepções dos contextos rítmicos, mas, outrossim, de realizaçõe que, em terrenos diversos de especulação, em múltiplos "gêneros", levantaram questões de cunho decididamente formativo: movimento de massas e dinâmica de uma interseção de planos, em "Os últimos Dias de Pompéia" (1926), de Enrico Guazzoni, fazendo inveja a muitos "especialistas" retardatários de Hollywood; Fabre, com suas invenções, no campo do fantástico e mirabolante, à la Julio Verne, em ''Saturnino Farandola"; e também, do mesmo Fabre, "Amore Pedestre", um curta-metragem autênticamente de vanguarda, uma concentração permanente no objeto - uma historieta de linhas tradicionais, narrada, ou melhor, visualizada estritamente através de pés, com a, no caso, sábia abolição do personagem figurado, em favor de uma presentificação pelo detalhe; a expressividade plástica correlacionada com as conotações simbólico-visuais, em películas como "Tigre Reale" e "II Fuoco"; a admirável seqüência da corrida dos carros em "Messalina"; os cômicos primitivos, principalmente André Deed e o mundo alucinado dos seus "Cretinetti", o espelho, já com função dramática (como elemento) e não apenas decorativa, num trecho do melodrama, de Mario Caserini, "Ma L'Amor Mio Non Muore" (1913).
Tudo isso, de dentre o pouco ainda do qual nos é dado para discernir, até 1930, com o aparecimento de um ápice: "Rotaie". Seu diretor Mario Camerini, começara a carreira anos antes, tendo dirigido, inclusive, uma das aventuras de Masciste, e é considerado, juntamente com Blasetti, principalmente, e Genina, como um dos sustentáculos do cinema italiano no período pré-neo-realista. Alguns historiadores a êle se referem, habitualmente en passant, no dançar de dedos sôbre o teclado da máquina, mediante discretas adjetivações, amenas generalizações, vagas constatações: "elegância", "finura", "toque", "sobriedade", ou então "o René Clair italiano, guardadas as proporções", segundo a postulação de Henri Agel, no seu manancioso e recém-publicado manual "Les Grands Cineastes". Segundo Agel, todos os seus filmes são comerciais (!) e, além de tudo, o cineasta italiano jamais poderia integrar seu cortejo particular de homens de cinema, pois, para apreciar Camerini, êle não se encontra naquêle necessário estado de predisposição "litúrgica" que constantemente lhe assalta frente a um Renoir e um Rosselini. Contudo, esta espécie de alienação pela liturgia, não pode ser caracteristica do artista consciente, que funda seu pensamento em formas, nem, muito menos, do crítico que procura elementos e relações e não fantasmas conteudísticos, os duendes da anedota, com suas "geniais" implicações sublatentes, apenas, de notável para quem imerge em "transe". Por isso, numa constatação objetiva: um homem como Renoir jamais o poderia conceber, quanto mais fazer tuna fita como "Rotaie"; o excesso de magia…
Por outro lado, basta "Rotaie" para que um diretor merecesse maior atenção ou, pelo menos, seu filme fôsse objeto de, não diríamos um capitulo nos compêndios, mas de consideraçõs mais fartas e substanciosas. O próprio Camerini, acreditamos, dificilmente igualou ou superou êsse teto, embora permanecendo, até hoje, como um realizador dotado de um mínimo de consciência artesanal: dois de seus últimos filmes apresentam qualidades: "Ulysses" e "A Bela Moleira''. E "Il Capello a Tre Punte", de acôrdo com Nino Frank, a mais viva de suas fitas, somente terá uma seleção de passagens a ser lançada no festival. Entretanto, o ponto de referência Camerini para a maioria dos críticos sendo "Gli Uumini, che Mascalzoni"! (e tal o mesmo Nino Frank atesta), uma pelicula leve, escorreita, despida de maiores implicações formativas, e que, portanto, empalidece totalmente frente a "Rotaie", pode-se aquilatar o quanto se tomou subestimado o cineasta e, especialmente, esta obra, no black-out histórico baixado sôbre o cinema italiano.
"Rotaie" (Rodas) constitui um dos paradigmas do cinema antiliterário, despojado de qualquer espécie de elocubração intelectual a presidir a fundação das imagens. A sua história nem chega a ser, na realidade, uma história; e nem contém um tema pessoalmente caracterizado. Trata-se mais de uma, pequena e simples fábula, calcada em pinceladas sentimentais e de teor construtivo: o homem e a mulher, e o desespêro encerrado num quarto de hotel - depois, a boa fortuna, com o achado da carteira de dinheiro - a seguir, com o dinheiro ganho sem esfôrço, o luxo, o vício e a degradação moral - retôrno ao estado primitivo, mas a compreensão de que o desespêro da luta pode substituir o desespêro, no vãcuo, da inércia - então a partilha do pão com o operário, a fábrica, o trabalho e a sólida alegria.
Não sabemos se Camerini conhecia algumas realizações americanas da época, vasadas em idêntico modo, uma série poussindo como pontos culminantes obras como "Seventh Heaven" (Sétimo Céu), de Frank Borzage, e "Sunrise" (Aurora), de Murnau. A absorção do espirito das mesmas nos parece evidente, assim como uma espécie de assimilação do estilo de René Clair no tratamento de algumas cenas - êste último parentesco, no entanto, mais definido em "Gil Uomini, che Mascalzoni!". Contudo, o régisseur italiano conferiu estruturação própria, autónoma, à sua fita - elementos e relações criteriosamente aplicados na elaboração de um processo peculiar, cujo ponto de partida é compreensão do funcional em seus têrmos mais simples e diretos, marcando um auge, à tôda prova, do despojamento, através das implicações isomórficas mais imediatas. Nenhum morceau de bravoure para efeito de cartão de visitas, nenhuma daquelas, espiralações eletrizantes, no caso, alheias ao rigorosamente preconizado fundo-forma. E, nisso, êle constrói uma película que, em seu campo de proposições, se não chega ao nível da de Murnau, é, a nosso ver, superior a de Borzage, dotada de maiores "lances" emotivos, cujo preço, todavia, é o seu acionamento, em certas ocasiões, vinculados a interferências melodramáticas.
"Rotaie", portanto, nasce de uma pura dialética imagem-câmara. E a expressão desta dialética atinge o seu ponto mais refinado na primeira parte, com os dois protagonistas no hotel barato - um trecho definitivamente antológico. Uma contextura rítmica sem jaça; a imagem sempre na exata medida da saturação, com o predomínio frisante do primeiro plano e também os close-ups muito bem utilizados e reforçados pelas sensíveis modulações faciais dos atôres, destacando-se Kathe Von Nagy, em interpretação de relêvo. Uma admirável contenção mímica é imposta aos intérpretes e com bastante rendimento, pois o filme, sendo mudo e apenas sonorizado a posteriori, mantém-se perfeitamente atualizado no tocante a esta parte. E, tal, sem que se deixe de perceber tudo o que os peronagens estão sentindo, e comunicando, com a abolição de gestos exagerados e com a interferência de, no máximo, uns quinze letreiros - praticamente, um recorde assinalado pelos realizadores.
Camerini mostra-se muito bem familiarizado com todos os recursos e elementos específicos de sua linguagem. Desde os movimentos de câmara até os cortes, êstes usados com invulgar mestria nas seqüências iniciais, dentro do quarto, em especial a pura montagem na hora em que revezam-se os planos dos rostos dos personagens, detalhe do copo, o trem que passa, o copo que cai novamente ocasional.
Na seqüência do trem, anterior e superior a de "A Besta Humana", de Renoir, êle lança mão do travelling, em conjugação com os cortes, em vivas confluências de formas, quando a noção de composição e enquadramento significante, que aliás ocupa todo a pelicula, denota a plena consciência de uma éstética. Um ritmo exterior, pictórico ou de cortes de efeito, precisamente coadunado, com o interior: o tempo de vigência funcional de cada shot-cell. O ôlho da câmara está sempre à procura do ponto de perspectiva de maior rendimento, em termos de significância: admiráveis exemplos são a tomada da roleta, em paralelo a sua mesa, ou da jovem, frente ao espelho, divagando com o lápis sôbre-os lábios.
Após a seqüência do trem, a tensão rítmica afrouxa um pouco, o cineasta perde algo do folego para, logo depois, retomá-lo nas excelentes passagens desenroladas, em tôrno à mesa de jôgo, com um clímax de euforia (exterior) e alucinado (fundo), mediante o emprêgo inventivo dos cortes e das fusões, num tipo de seqüência que, algum tempo depois, viria a ser bastante solicitado. A seguir, a pausa, o desfêcho do drama e, novamente, no final, uma eufórica alegoria.
A música surge com sobriedade e atua. Uma linha melódica, de ponta a ponta, neutra ao correr das imagens, sem aquelas ostensivas intervenções para sublinhar os instantes mais destacados. E o ruído já era compreendido com função dramática, especialmente os emitidos pelo trem.
O cinema em sua consubstanciação puramente formativa atinge, com "Rotaie'', um dos seus pontos exemplares. É, para o cinema italiano, um marco, e dos mais instigantes, demonstrando, ao mesmo tempo, que os grandes diretores de agora, neo-realistas ou não, não tiveram tanta necessidade de voltar os olhos para fora a fim de absorver as constantes mais vivas estipuladas por uma tradição.

Correio da Manhã
27/08/1960

 
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