jlg
cinema

  rj  
Um maldito filme de Clair

Na importante obra de René Clair, existem duas vertentes bem definidas. Traduzem duas atitudes diversas - embora, às vêzes, surjam mescladas num ou noutro filme - de encarar as coisas e situações e, em consequencia, de exprimir o seu sentimento do mundo. O lirismo e a farsa: assim podem ser qualificadas.
Tôda a primeira fase de sua carreira, até o fim do cinema mudo, está vinculada ao terreno da farsa, com exceção de duas fitas, justamente destituídas do menor interêsse: o pequeno documentário, "La Tour", e "La Prole du Vent". As outra, "Paris qui Dort", "Entr’acte", "Le Fantôme du Moulln-Rouge", "Le Voyage Imaginaire", "un Chapeau de Paille D'Italle" e "Les Deux Timides ", perfazem o ciclo e, conforme o caso de cada uma, contêm, com maior ou menor acentuação, as convergentes variantes: o que se constataria como a fantasia, a paródia, a sátira, a alegoria ou o burlesco.
O início da época do cinema falado trouxe também o ápice de uma já fértil linha de evolução, com a concentração de Clair na outra vertente. Quatro películas extraordinárias consumaram a elevada estatura de sua obra: "Sous les Toits de Paris", "Le Milllon", "A Nous la Liberté" e "Quatorze Juillet". A marcação sonora da opereta ou do
bal-musette sublinhavam as imagens de um universo sob a égide da fraternidade humana, focalizando sempre personagens simples, suas alegrias e seus quiproquós - tipos geralmente à margem da marcha regular de uma sociedade organizada. O princípio de um máximo de liberdade individual, tangendo mesmo o anarquismo caracterizado.
Foi exatamente após "Quatorze Julliet" que êle, desejando mudar de gênero, saltou novamente para o outro plano e realizou "La pernier Milliardalre". E aqui encontramos também um outro filme extraordinário, ponto-teto em sua filmografia, lá, só encontrando paralelo num "Sous les Toits de Paris", num "A Nouis la Liberté", num "Les Belles de Nult" ou num "Le Milllon". Uma obra-prima, contudo uma obra maldita, porque, desde a sua estréia, em 1934, até hoje, tem sido relegada a um segundo plano na carreira do cineasta. Se formos consultar pelo menos grande parte dos historiadores do cinema ou então biógrafos, constata-se isso facilmente. E o insucesso financeiro, de público, que habitualmente ocorre nos casos de obras que se adiantam à sua época, bafejou violentamente “Le Dernier Milllardalre" que, se era uma película maldita da crítica, muito antes já o seria dos espectadores comuns. Georges Charensol opina que é difícil interessar o público numa fita, na qual não exista um personagem sequer com qual êste possa simpatizar e a propósito disso, faz-se a perfeita linha de demarcação com os quatro grandes sucessos imediatamente anteriores: de público e de crítica…
O René Clair inventor talvez mesmo nunca estivesse tão presente quanto em "Le Dernier Milliardaire". Uma concepção de ritmo bem peculiar e eficaz compassa o desenrolar das imagens e e ações que incorporam o movimento total do entrecho estão despidal de muitos arcaísmos do vaudeville. A paródia decorre num tom sêco, mais silencioso. Responsável também pelo cenário, o diretor coloca em foco uma série de situações originais, algumas bastante hilariantes, possibilitando, entretanto, excelentes soluções de cunho visual.
A história, em resumo, narra as dificuldades pelas quais passa o reino (imaginário) de Casinário, completamente desprovido de dinheiro. A fim de resolver o problema, a rainha volta-se para o único remédio à vista: solicitar o auxílio de um filho daquele reinado, conhecido como grande capitalista, pedindo o seu retôrno ao pais de origem e, em paga, prometendo a mão de sua filha. Esta ama um jovem regente da orquestra oficial e não vê com bons olhos a nova medida, M. Banco, o ricaço, chega a Casinário e empreende verdadeiro reboliço, tomando atitudes estranhas, perdendo a memória e ridicularizando os ministros. Tudo até que se descobre estar falido o falso milionário. Tarde demais: com a fuga de sua filha, a velha rainha sente-se obrigada a, ela casar com M. Banco, sob os aplausos da população.
Logo no comêço encontra-se, em boa seqüência, um tipo de concepção que, posteriormente, Orson Welles iria desenvolver de forma mais avantajada em "Cidadão Kane": as primeiras tomadas de Casinário, alguns aspectos do seu modo de vida e de sua gente e depois um recuo da câmera e percebe-se que tudo estava sendo exibido numa tela para M. Banco. Excelente solução, principalmente tomando-se em consideração a época, e que permite colocar em ação, de imediato, tôdas as constantes básicas da trama que viria a se desenrolar. Com a chegada do banqueiro, acompanhado de seu detetive dorminhoco: a paródia principia a ganhar côres definitivas com a marcação de uma farsa em tom burlesco e com a propositada aberração de uma totalidade de personagens caricatos - caricatura que não perdoa até mesmo o conjunto e atinge a massa de população.
Uma série de bons achados de carater anedótico, bem, entrosados com um sempre ágil jôgo de planos, espelha a imaginação do autor: como o dinheiro não existe, todos realizam suas compras e transações pagando com objetos ou bens de consumo e, então, vemos, por exemplo, aquela cena na qual um homem paga a despesa do café mediante uma galinha, recebe pintos de troco e deixa um ovo de gorjeta. As reuniões ministeriais e os atentados politicos, por sua vez, trazem um núcleo de situações que lêvam ao absurdo por uma sucessão feérica de incongruências, de pinceladas bizarras e de recursos insólitos de sublinhamento (mais habitualmente no plano sonoro e o mais contente são os acordes do hino que a todo instante a pequena orquestra inicia), avolumando-se tudo na fase de alucinação do ricaço.
Na realização de "Le Dernier Milliardaire", Clair não pôde contar com a assessoria de habituais colaboradores, como Lazare Meerson (décors) e o fotógrafo Georges Périnal (êste substituido por Rudolph Maté) e, entre os atôres de sempre, lá estavam Paul Olivier (Primeiro Ministro), Raymond Cordy (o criado sem gravata) e Aimos (o mendigo). Para o papel de Banco, foi buscar um bastante conhecido ator de teatro na época, Max Dearly, e que se saiu excelentemente. Marthe Merlot caracterizou muito bem o personagem da rainha e Renée Saint Cyr, a princesa. Assim, apesar de fundas modificações na equipe, a homogeneidade não foi rompida.
A sátira incisiva ao Estado e sua organização e a ambição de poder no individuo daí decorrente, está presente tanto aqui, como já antes estivera em. "A Nous La Liberté", êste consubstanciando, entretanto, uma alegoria ao espírito fraterno, à liberdade frugal, pertencendo à outra vertente (lírica) por entrar a farsa de modo mais acidental, "Le Dernier Milliardaire" é, sob êsse aspecto, um filme bem mais niilista, frio. Proibido na Itália e na Alemanha, quando de seu lançamento, não se trata apenas de uma pelicula antifacista como alguns a rotularam. Tôda uma implicação anarquista, marcada pelo desprêzo a qualquer forma de autoridade constituída, mantém-se nítida sob as evoluções da comédia. E a fôrça do dinheiro ou das armas, como pontos de predominância, garantindo o estabelecimento de uma ordem, são o alvo final do cineasta, numa das variantes de sua obra que representa uma espécie de protesto contra o sufocamento e conseqüente isolamento do individuo, privado do contato com os dados reais numa sociedade que lhe impõe valores abstratos. A degenerescência do comportamento humano é o efeito dessa espécie de protesto utópico que dá o sentido à obra de Clair e também configura visivelmente o seu parentesco com Chaplin e o impasse para o qual, menos versátil, marchou êste últlmo. Justamente, no terceiro filme de uma trilogia que se projetava a partir de "A Nous la Liberté", o diretor francês vislumbrou o impasse: "La Beauté du Diable", desigual em seu aparato barroco e que ficou muitos pontos abaixo das outras duas. Clair, num relance, tomou, a equacionar seus instrumentos noutro ângulo de visão e surgiram "Les Belles de Nuit" e "Les Grandes Manoeuvres”, duas admiráveis obras de cinema.

Correio da Manhã
05/03/1960

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
Jornal do Brasil 12/05/1957

Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
Jornal do Brasil 16/06/1957

Ingmar Berman na comédia
Jornal do Brasil 30/06/1957

562 registros
 
|< <<   1  2  3   >> >|