ATRAVÉS de um critério de transposição harmônica de um método de análise de um terreno de especulação estética para outro, podemos aplicar dentro do campo de ação da linguagem cinematográfica o método elaborado por Ezra Pound a fim de estipular em que ponto e ou mediante que recursos avulta a importância dos principais escritores ao correr dos séculos.
Diz Pound em seu "ABC of Reading", pag. 39: "Quando vocês começam a procurar os "elementos puros" em literatura, hão de descobrir que esta tem sido criada pela seguinte classe de pessoas: 1) inventores - homens que acharam um novo processo, ou cuja obra existente nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo; 2) os mestres - homens que associaram uma quantidade dêsses processos e que os usaram tão bem ou melhor do que os inventores; 3) os diluidores - homens que vieram depois das duas primeiras espécies de escritor e que não conseguiram realizar o trabalho tão bem..." No que concerne ao interêsse da classificação para o assunto a ser exposto, não é necessário apresentar os itens restantes da escala organizada pelo poeta americano.
Quando nos referimos a um artista inventor, não estamos atribuindo tal qualificação a partir de um esquema dotado de extrema amplitude a permitir generalizações. Não se trata da descoberta de novos materiais passíveis de utilização, mas sim de um modo inédito de manipular ou estabelecer a junção de determinados elementos no totum estrutura da obra de arte. Sendo esta última um objetivo virtual, o que caracteriza os elementos a diferenciá-los dos materias, qualifcando-os, em paralelo, numa órbita de virtualidade, é a respectiva funcionalidade de cada um dentro do jôgo de relações em que estão dispostos com o fito de articular uma totalidade, uma forma exprêssiva. Como diz Susanne Langer em "Problemas of Art", pág. 42: " Os materiais são reais (estão presentes), porém os elementos artísticos são sempre virtuais; e é com elementos que o artista compõe uma imagem, uma forma expressiva". Destarte, como outrossim a própria Langer já discriminara em· outro volume de sua autoria, "Feeling and Form", págs. 84 e 85, an dizer que as côres num quadro se constituem em elementos determinados pela sua ambiência enquanto, por exemplo, as tintas no tubo ou na paleta são materiais, no terreno da sétima arte faixa sonora, as diversas espécies de tomada capaz de realizar uma câmara, a luz etc. correspondem ao material de trabalho passível de utilização como elementos, isto é, dotados de uma função específica na consecução de um filme.
Os inventores geralmemte acorrem em épocas durante as quais os múltiplos processos de forjar uma linguagem formulativa no campo da arte encontram-se exauridos, quando então as áreas pertinentes às operações simbológicas estão desgastadas em sua fertilidade. Muitas vêzes os mestres, surgindo a posterio, aprendem com extrema habilidade os novos métodos e ou recursos revelados pelos inventores e os conduzem às derradeiras conseqüências de seu aproveitamento, aperfeiçoando mais a sua capacidade funcional mediante as sucessivas experiências. Contudo, sem a existência dos primeiros, o acionamento de uma evolução de formas ficar constantemente retardadatos os mestres nem chegariam a existir. Inventores são, na mais elevada e estrita concepção e, ao mesmo tempo, todos êles também mestres: Mallarmé, Cummings ou Pound, na poesia, Joyce, no romance, Kandinsky, Malevitch, Mondrian ou Van Doesllurg, na pintura, Calder, com os seus mobiles, Gabo ou Pevsner, na escultura, Bretch, no teatro, Schonberg ou Webern, na música. Chegam e conferem nova ênfase ao modo de fazer atuar uma série de elementos ou conduzem inusitadamente outros materiais à categoria de elementos, reativando ou trazendo diferentes tonalidades ao dinamismo intrínseco de todo objeto estético.
***
O cinema, que é a arte mais nova, recebendo continuamente o impulso de repetidas descobertas nas esferas do experimento científico que mais lhe afetam, sempre a renovar portanto a potencialidade dos materiais a que pode recorrer, acolhe lógicamente em espaço de tempo muito menor o surto dos inventores. Desde o início, no período das fitas mudas, a partir de Griffith, passando por Chaplin, "Caligari" e o expressionismo alemão, o movimento de avant-garde, Eisenstein e o cinema soviético, até o comêço dos "talkies", um largo número de personagens isolados ou grupos de vanguarda fizeram eclodir uma sucessão quase ininterrupta de experimentos renovadores, fundando os alicerces para uma estética básica da nova arte.
Entretanto, em razão de ser a obra cinematográfica uma realização a exigir na maiora das vêzes uma enorme equipe de pessoas especializadas para levar a cabo o seu complexo roteiro-execução, torna-se difícil em certas ocasiões assinalar quem possui o melhor quinhão dos méritos na hipótese de um grande êxito artístico. Muitas vêzes, o autor do script já lega ao diretor uma boa porção de sugestões a fim de que êste seja capaz de imprimir soluções ou efeitos inventivos a diversas passagens. Noutros casos, ocorre o contrário e é o "metteur en scene" quem se encarrega de extrair uma excelente película de um cenário fraco. Existem, todavia, aquêles aos quais é impossível negar a importância da atuação, quer seja em virtude do valor maciço do corpo de obra ou pela presença constante em todos os momentos da sua elaboração percebida com facilidade. De um lado, um Chaplin, por exemplo, dono de extraordinária fôrça intuitiva. Do outro, um Eisenstein, o intelectual refinado, o autor de alguns dos ensaios mais indispensáveis para o estudo da linguagem de cinema, "Film-Form" e "Film-Sense", construindo a base do puro racionalismo, talvez o cineasta mais consciente do caráter indispensável do processo formativo para a realização de uma obra de arte.
Quando apareceu o cinema falado, a faixa sonora (ruídos, diálogos, acompanhamento musical etc.) passou a ser material-fonte para a concepção de vários elementos novos a concorrer na execução do filme. Logo após as inúmeras variantes espetaculares do fabuloso achado, alguns cineastas principiaram a tentar seu emprêgo num sent do mais elevado de criação. Hitchcock, o responsável pela existência de um gênero essencialmente cinematográfico o thriller, foi dos primeiros a conferir ao som uma utilização inventiva na fita ''Blackmail", como o nota Egos Larsen, em "Spotlight on Films": "imagem e som eram usados como elementos complementares, dois pilares sôbre os quais era construída a ação - não apenas a imagem ilustrada pelo som ou vice-versa". De Hitchcock, deve-se dizer que, embora um veterano, é até hoje um dos maiores inventores na sétima-arte, principalmente no tratamento do detalhe, na solução de algumas seqüências isoladas, as de clímax em especial. Entre as suas realizações mais recentes, podemos recordar o trecho do assassinio da jovem em "Pacto Sinistro" (Strangers in a train) visto através das lentes dos óculos que caíram no solo, a corrida de Daniel Gélin com uma faca enterrada nas costas em "O Homem que Sabia Demais" (The Man who knew too much).
Eisenstein, com o refôrço do som, conseguiu desenvolver com um grande enriquecimento de recursos as suas aplicações das múltiplas técnicas facultadas pelos métodos de montagem e fêz o "Alexandre Nevsky", um filme realmente de estatura invulgar.
John Ford, a grande figura do estern, conferiu à necessidade de economia de planos uma série de lições soberbas, fato que há pouco foi reconhecido por um dos seus discípulos dentro do gênero, Anthony Mann, ao "Cahiers du Cinema": "em um plano, êle expõe mais depressa do que qualquer outro o local, o conteúdo, o personagem".
Posteriormente, "High Naon" (Matar ou Morrer), de Fred Zinneman, aproveitando o tempo real na tela, utilizado antes por Robert Wise em sua obra-prima, "The Set-up" (Punhos de Campeão), viria a fornecer amplas dimensões a uma nova categoria de western, o psicológico, influenciando até agora uma infindável quantidade de realizações.
O cinema americano continua a se constituir hoje em dia no maior celeiro de inventores. Fôrça das circunstâncias num lugar onde domínio do artesanato na linguagem sempre estêve na dianteira dos outros centros produtores, pelo menos no que tange à quantidade dos bons realizadores, e malgrado a interferência de entidades reacionárias dêste e do outro mundo prejudique o trabalho de muitos dêles. No momento, Robert Aldrich, Stanley Kubrick e, na comédia, Frank Tashlin são os que melhor se destacam entre os egressos das últimas gerações. Aldrich tem uma obra já plena de admiráveis criações e pelo menos "Vera Cruz" "A Grande Chantagem", "Morte num Beijo" e "Fôlhas Mortas" denotam a preocupação inventiva a cada instante. Com uma sucessão de tomadas insólitas, onde muitas vêzes as figuras de primeiro plano fornecem a impressão de corpos suspensos, êle propicia um bom número de efeitos inusitados para o jôgo dramático, procurando sempre dar ênfase àquilo que cossidera primordial para prender a atenção do espectador.
Kubrick retomou o legado de uma série de experimentos de vanguarda e revitalizou-os dentro das possibilidades máximas de dinamizar o ritmo da película. Conferiu ao flashback, assim como o sueco Ingmar Bergman cujo estilo parece fasciná-lo, uma função dê elemento vital na arquitetura do filme, quebrando a unidade linear do desenvolvimento temporístico. Por ora, com apenas duas fitas aqui exibidas, "The Killling" e "Killers Kiss", e outra, "Paths of Glory", depositaria de grande número de elogio da critica estrangeira, Stanley Kubrick faz-nos acreditar que virá a ser um dos grandes cineastas do nosso tempo.
Tashlin na comédia, procurando ver seus personagens sob um prisma caricato, um tratamento; inusitado ds situações e ao uso da côr, a contribuição de alguns musicais, "Um Americano em Paris", "Cantando na Chuva", "A Roda da Fortuna", Huston, em certas ocasiões inventor: "The Red Badge of Courage", "The African Queen", noutras o insuperável mestre: "The Asphalt Jungle", "O Tesouro de Sierra Madre", a personalidade de alguns independentes, tudo isso marca o pulsar incessante das atividades em Hollywood dos artistas sérios.
Mas; fora da meca do cinema, encontram-se também na atualidade alguns diretores de valor no terreno inventivo. Na França Jacques Tati renova alguns processos para a comédia burlesca, principalmente no que concerne ao uso do material sonoro, as seqüências marcadas por um filete de som que as qualifica, ao passo que o diálogo jamais assume o primeiro plano no interêsse da platéia, somente reforçando o colorido do trecho. O filme: "As Férias de M. Hulot".
Temos ainda a personalidade impressionante de Orson Welles, com os seus grandes achados e efeitos pirotécnicos, a vivacidade de Clair e Duvivier, algo de David Lean (um grande mestre sem dúvida), o cinema japonês, porém a grande figura de proa, como inventor, é o sueco Ingmar Bergman que, revivificando alguns dos elementos básicos da cinegrafia do expressionismo alemão dentro das melhores possibilidades técnicas de hoje e, ao mesmo tempo, procurando ao máximo formular uma ambivalência espacial e de tempo (interpenetração de planos, jogo de espelhos e, para o problema referente ao tempo, a solicitação ao flashback como elemento dotado de função básica na estrutura propulsora), proporporciona os maiores lances de arrôjo na busca de uma dinamização permanente da imagem. "Noites de Circo", "Juventude" (estas, duas obras-mestras); "Uma Lição de Amor" e mais elogios da crítica estrangeira a "Sorrisos de uma Noite de Verão" e o recente "No Limiar da Vida" são mais do que depoimentos suficientes sóbre a capacidade dêsse extraordinário realizador .
Correio da Manhã
07/06/1958