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Invenção – Max Ophüls

Recentemente falecido, Max Ophüls foi um dos cineastas que mais primou pela invenção, não só em virtude da presença original de seu estilo e temperamento, mas também pela formulação definitiva de uma concepção de ritmo até então pràticamente inusitada e de consubstanciação fundada em valores essencialmente cinematográficos.
Com um espírito de formação vienense, vê-mo-lo em grande parte de suas películas reportando-se a entrechos desenrolados em ambientes de luxo, coqueterie, dança, intriga. Ao mesmo tempo, a arquitetura intencionalmente rococó dos cenários. Tudo isso pode fazer crer que se trata de um artista reacionário. imbuído de um fim de sieclismo decadente, pronto ao irresistível apêlo às invocações românticas, desde o inevitável sublinhamento pela valsa, constante habitual dêsses filmes, até o arremate estribado em alguma plaisanterie irrisória, que pode mesmo ser um duelo. Tal reacionarismo, entretanto, não existe e jamais poderia ser constatado a partir de um ângulo de yisão conteudístico. Ao contrário, Ophüls é justamente válido no momento em que, elaborando a reconstituição de uma época, coloça em foco vários tipos de comportamento a ela integrados e mediante a dinâmica de uma linguagem formulativa. A sua intuição formal, através do cinema, representa uma autêntica percepção da realidade e o ato criativo, por conseguinte, se constitui na concretização de novas descobertas do real, dispensando para tanto em, qualquer modalidade de juízo valorativo, os aforismos de rótulo: “um romantico”, "um decadente", "um homem de espírito", "um saudosista" etc.
A série de reapresentações de suas fitas, que o Museu de Arte Moderna vem levando a cabo, permite constatar o vigor de tôda uma obra, ainda, passado alguns anos, rica em atualidade de efeitos e, hoje em dia, com um nível de importância decisivamente redimensionado: "Carta de uma Desconhecida", "Madame de...", "Le Plaisir", "La Ronde". Nesse caso, em especial, o tempo, em lugar de entrar como agente de erosão, trouxe um novo frescor - um convite a uma participação com elas mais ampla e profunda.
Para o cineasta vienense, a chave de estrutura no acionar de um ritmo repousa numa constância deliberada. Essa constância, todavia em oposto ao critério dos seguidores de Eisenstein, não é a da imediaticidade de efeitos via o jôgo de cortes. É o fluir pelo movimento de câmara. O traveling incessante que mantém os cenários continuamente em dança. E também a fusão, recurso. aliás, muito utilizado pelos cineastas de tendência para o barroco. Orson Welles ou Ingmar Bergman, por exemplo.
A concepção dêsse fluir, por outro lado, não representa in totum uma contraposição à idéia de Eisenstein de arte como conflito. Muito menos faculta a conclusão de que não haja montagem. Montagem é uma atividade de coordenação complexa, exigindo uma série de soluções para problemas de categoria diversa, cada um por si, mas que se entrecruzam. Não só o corte, encarado pura e simplesmente. Nem outrossim fica elidido o conflito; apenas a presença de tal fator permanece condicionada a uma supra-ordenação de recursos, também visceralmente cinematográficos travelings, fusões, panorâmicas, fade-in, fade-out, ruídos, diálogos, música etc.), que o tornam indireto em sua manifestação.
O aspecto inventivo nas, realizações de Max Ophüls foi exatamente o de, captando tôda uma gama de virtualidades inexploradas na utilização renitente do movimento de câmera, forjar uma determinada modalidade rítmica, fértil em variações convergentes, que agita um encadeamento de imagens em novas organizações sintáticas da linguagem própria ao filme. E o clima, a ambiência visual de suas películas está, via de regra, em perfeita adequação com êsse ritmo lavrado para a sucessão de seqüências. Fundo e periferia se coadunam num todo indissolúvel. Aqui está a consumação de uma prolícua intuição formal, entrosada com o modo pessoal de perceber a realidade por parte do artista, seccionando as rígidas limitações anedóticas.
O rigor na procura de um apuro visual está sempre em evidência. Riqueza de enquadramento, quando os objetos que emolduram a cena já, de. início, conduzem o ôlho a um determinado parti-pris da situação. Em paralelo, o deslizar da camera por salões, corredores, escadas, lustres, espelhos, até o desembocar num detalhe ou num close-up, ou então o refluir pela fusão.
A essência do espírito romântico de uma época ultrapassada em definitivo nos é devolvida em tôda a sua autencidade. O amor é permanentemente a principal fôrça motora a agitar seus personagens, com a preferência de colocar em primeiro plano o temperamento feminino em situação. Nesse ponto, Ophüls e o sueco Ingmar Bergman também se encontram.
Em "Carta de uma Desconhecida" (Letter from an unknown woman), temos a história da exasperada obstinação de uma mulher por alimentar uma paixão. A fixação que possui o tipo vivido por Joan Fontaine, desde a adolescência até a idade de madura, pelo pianista interpretado por Louis Jourdan leva o espírito romântico ao ponto nevrálgico de sua essência indissolúvel: "I love my love for thee more than I love thee" (Amo, mais que a ti, meu amor por ti), Fernando Pessoa. Em dado momento, êle não era mais, ou melhor, talvez nunca tenha sido uma pessoa que lhe despertasse objetivamente um impulso passional. Era a corporificação simbóiica do mito do amor, a transferência física de uma idéia que não podia morrer.
Já no admirável "Desejos Proibidos" (Madame de...), o diretor, partindo do singelo motivo de uma irrisória intriga, delineia e reanima tôda uma esoécie de comportamento que viscejou no período de florescimento de uma sociedade aristocrática e decadente, onde, nos salons ou no boudoir, o ócio e a frustação eram quase uma constante inalienável para as damas. Dartiéle Darrieux, no papel da protagonista, teve uma atuação marcante, caracterizando o personagem nas menores nuances de sua fraqueza e inconsistência. Nessa fita, a ousadia inventiva baseada na recorrência aos movimentos de câmera chega ao paroxismo. Os aposentos de Madame ou os salões, onde pontifica a valsa, são percorridos, a partir de audaciosas angulações, num incessante entrelaçar de travelings, a vislumbrar em ritmo trepidante o aparato rococó do luxo e da inconsequencia.
"La Ronde”, saborosamente amoral, traz o amor a uma condição de jôgo e o reduz a uma expresso maís simples de imediata saciedade. O carrocel-símbolo move os pares e os desfaz num volteio pelos cenários habituais: os quartos, os "reservados" dos restaurantes, as praças, os recantos escuros.

* * *

No canto de cisne de sua carreira, Ophüls estava destinado a promover a primeira revolução na estética do cinemascope. Essa revolução foi "Lola Montez", provavelmente o maior filme de sua autoria e um dos maiores nos últimos vinte anos de cinema. Dizemos provavelmente porque os produtores criminosamente desmontaram o celulóide, como o tinha concebido o realizador, que morreu procurando impedir que isso acontecesse, e "remontaram-no", apoiados numa reorganização cronológica dos episódios, quebrando, conseqüêentemente, tôda a eleboração rítmica feita à base de flashes-backs descontínuos. E essa foi a versão à qual assistimos.
Contudo, tendo-se um conhecimento por alto da ordenação original, é possível denotar a pujante arquitetura dessa película inesquecível, mesmo em edição deturpada e fragmentada.
A invenção vem concebida em têrmos de estrutura. Retorna o tema carrocel com as reminiscência da protagonista no circo e a técnica da liberdade temporal é utilizada. Mas não é sômente a descronologia de flash-back, com fluxos e refluxos de ida e vinda do núcleo radial - circo e carrocel - a mestria nos travelings, o uso insólito e admirável da côr. A invenção e a revolução estão principalmente na utilização dinâmica do campo visual proporcionado pelo cinemascope. A tela amplia-se e estreita-se de acôrdo com as necessidades do diretor para uma dada seqüência, ou então surge dividida em duas ou mais partes. A fertilidade do novo recurso é flagrante e o impacto da dinâmica visual de "Lola Montez" é contundente. Agora é desenvolver todo um possivelmente rico foco de experiências. "Lola Montez" é um filme aberto para o futuro. Com essa derradeira fita não pode haver dúvida a respeito da grandeza de Ophüls, que consegue encontrar medida semelhante em muitos poucos outros cineastas na atualidade. E, no terreno da fabulação constitui também um magnífico arremate a uma boa parte de sua obra, que é tôda uma saga da decadência do romântico, a impressionante cena final: Lola na jaula, frente à turba que paga um dólar para beijar suas mãos.

Correio da Manhã
27/03/1959

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

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Jornal do Brasil 17/02/1957

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Jornal do Brasil 24/03/1957

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Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

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