Através de uma das últimas sessões do MAM, realizadas como sempre no auditório da ABI, foi apresentada a famosa película de Robert Bresson, “Les Dames du Bois de Boulogne”, considerada por muitos críticos estrangeiros como uma obra de feição antológica.
Para nós, uma tal acepção, se caracteriza como um dos grandes mal-entendidos da sétima arte, pois, antes de tudo, e se levarmos em conta os instrumentos mais válidos existentes para aperfeiçoar e qualificar os meios de expressão da linguagem cinematográfica, “Les Dames du Bois de Boulogne” tem pouco ou nada a ver com cinema. Filme intimista, atualização da tragédia clássica ou pura etc., nenhuma classificação especiosa poderá desvendar o segredo de uma cadeia de encômios tão difundida.
Toda a literatura do trio Diderot-Cocteau-Bresson se afoga num ritmo pesado, num jogo de paixões frio e inconseqüente, onde a classe absoluta de intérprete e a máscara inolvidável de uma Maria Casares se constitui em muito pouco para satisfazer aos objetivos de teor extremamente ambiociosos que eram visados. A erosão do tempo não funciona como excusa: Chaplin, Eisenstein, o expressionismo alemão, “Tabu” etc., estão aí com a importância que desempenharam em dado instante da evolução da arte do século. Onde colocar a película de Bresson?
Evidentemente que a realização, muito cuidada, mantém um certo nível – jamais cai no mero dramalhão. A fita vem inteiramente repassada por um elevado grau de dignidade artesanal, o décor bem concebido, fotografia boa, atuação dos intérpretes eficaz. Porém, tudo isso é mais qualidade de “achievemente”, dentro do processo de convocar os elementos formais imperantes para a estruturação da obra. E nesse ponto não se encontra nada que possa valorizar a produção como necessária para uma filmoteca. O ritmo criado é estéril em efeitos dinâmicos e muitas vezes monótono. Não existe praticamente o menor apelo para os recursos de montagem. O enquadramento sempre pré-equaciona todos os trechos a partir de uma visão estática – tempo e espaço imitando diretamente uma realidade demasiado convencionada pela trama.
Outrossim, o problema cinema versus teatro não se configura já que os autores não partiram de uma adaptação de peça teatral. De qualquer forma, o ângulo de visão cinematográfica focalizando e promovendo a reincidência do sucesso artístico de uma obra do palco já tem fornecido contribuições de vulto nos últimos anos, especialmente as adaptações de Shakespeare levada a efeito por Laurence Oliver, Orson Welles e Mankiewicz ou então, e talvez a maior reussite em tal esfera, a extraordinária versão para o celulóide de “Uma Rua Chama Pecado” de Tennessee Williams, consumada por Elia Kazan.
Porém, nessas películas, o sentido do grandioso ou o detonador do pathos se plasma de modo autêntico – há um patente fluxo dinâmico do contra-choque dramático, através dos métodos de solução empregados para o tratamento no écran em exata e funcional correlação com as pretensões existentes.
Em “Les Dames du Bois de Boulogne”, Bresson quase que de propósito enveredou por uma trilha pouco fértil em princípio para soluções de interesse e se perdeu nos labirintos de uma literatura completamente amorfa, desajustada da realidade estética do momento, ficando impotente para extrair um caráter de transfiguração patética de um impacto passional puro, alheio às fundamentações lógicas do complexo ético-social vigente. Os personagens contam a história, a câmera acompanha as suas evoluções, um ou outro claro-escuro bem achado, alguns “close-ups” dosados de uma certa expressividade, o estranho “chapeau” de Maria Casares e mais nada.
O argumento é a parte menos culposa; afastado da pretensão livresca, teria oportunidade de receber uma adaptação fértil para o uso e o desencadear de vários efeitos atuantes no vitalizar de imagem e ritmo. Ao contrário disso, o “metteur en scène” evitou qualquer formulação arejada que se baseasse nas pesquisas estéticas vinculadas a ritmo, força visual ou movimento, preferindo esmiuçar nuances de conteúdo num mister demasiado limitado quando o controle sobre a exarcebação do cunho operístico veio forçosamente a se transformas em sua principal preocupação.
Comentários
O famigerado superscope 235 (325 ou qualquer coisa) continua a sua carreira em nossas telas sem que, até o momento, nenhuma providência tenha sido tomada para estancar a absurda aberração. E enquanto não houver um tabelamento de preços mais maleável a coisa permanecerá com todo o seu acinte – a exploração da bolsa do público sem a menor cerimônia.
O que ocorreu com “Lodo na Alma” foi, em suma, praticamente o mesmo que com a “A Trágica Farsa”: algumas distorções, cabeças um pouco cortadas, granulações a prejudicar visivelmente a fotografia etc. E o absurdo: o espetáculo fica sensivelmente prejudicado e paga-se mais 50% do preço normal da entrada. No caso de “Lodo na Alma”, o dano de caráter artístico foi menor, por se trata de uma película bem inferior à de Robson.
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Ainda sobre “Lodo na Alma”, forçoso se torna chamar a atenção para uma determinada seqüência, digna do melhor Hitchcock, uma passagem isolada que se impõe em nítida projeção vertical em comparação com o sóbrio e linear desenvolvimento da trama: referimo-nos ao momento em que a protagonista, interpretada por Arlena Dahl (uma das cinco mais belas de Hollywood), mata inadvertidamente o seu idoso marido a tiros de revólver. Existe nesta cena um apurado jogo tensional, mediante a utilização precisa dos cortes, a justaposição dos primeiros planos, a perfeita coadunação com os ruídos até a eclosão final com o apertar do gatilho ao abrirem a porta. Um lampejo de talento e de boas intenções do diretor Ken Hughes, preso ultimamente a uma irremissível apatia.
Aliás, a fita é conduzida com dignidade, se encarada de um modo geral – superior à média das produções comerciais no gênero psicologia barata + mulher fatal.
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Outro dia os críticos Ely Azeredo, Cláudio Rocha e o responsável por esta seção dirigiram-se ao cinema Império a fim de assistirem a um filme sem maiores pretensões, “Jogando com a Sorte”, mas que contudo poderia apresentar alguns aspectos interessantes. Embora chegassem apenas com cinco minutos de atraso e a película principal ainda não tivesse começado (pois de fora ouvia-se a voz do comentarista de um jornal nacional), a bilheteria já se encontrava fechada, os empregados providenciando as arrumações finais, malgrado houvesse um bom número de pessoas desejosas de entrar. Não era, por outro lado, a primeira vez que se verificava tal fato durante a derradeira sessão (10, 20hs.), pelo menos na mesma semana.
Procurou-se entrar em contato com o gerente, mais não fosse, à guisa de informações a respeito da curiosa medida. O rapaz voltou, lacônico, comunicando que ele somente poderia receber as 11 horas (sic). Estranho, o gerente.
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Dos mais maléficos é o projeto concebido a fim de tornar obrigatória a dublagem de filmes estrangeiros aqui no Brasil.
Sempre fomos, a princípio, contra tal processo no que tange às realizações cinematográficas, pelas deturpações a que está sujeito o espetáculo. Contudo, no que se relaciona com o nosso caso, a gravidade do perigo assume, de imediato, proporções imprevisíveis, pois é notória a escassez de elementos que possam se desincumbir da função de substituir satisfatoriamente artistas de elevada estirpe, ressaltando-se ainda a precariedade técnica dos meios que dispomos para enfrentar uma tarefa desse porte. Afinal não é nada agradável vermos Vivien Leigh com a voz de uma Ismênia dos Santos, Danny Kaye na de um Zé Trindade, Orson Wellen na de um Ivon Cury ou Pierre Fresnay na de qualquer cômico da Praça Tiradentes.
Se na França, para citar um exemplo, tal medida se encontra em pleno vigor, é porque provavelmente lá existem atores de classe ou pessoas especializadas na tarefa. Aqui? E assim temos a ameaça de uma nova providência sem qualquer fator cultural de caráter relevante, a prejudicar a sedimentação e o desenvolvimento de um eficiente cinema brasileiro ou no Brasil.
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De traição ao Steinbeck de “The Wayward Bus” (O Destino Viaja de Ônibus) é o que se poderia denominar “Ciúme, Tempero de Amor”, título ridículo (próprio de comédias sofisticadas) conferido ao derradeiro lançamento da Fox nas telas cariocas.
Toda a amplitude do romance, caracterizando o desencontro do indivíduo numa civilização de sonhos rotulados, a procura de uma solução marginal para problemas impossíveis de resolver dentro dos esquemas de uma vivência adstrita às normas sociais vigentes e à auto-contenção, ficou restringida ao episódico de um ocasional entrelaçamento de uma série de jogos passionais com “happy-end” garantido a todos.
O diretor Victor Vicas apenas se preocupou com o esmero de algumas passagens de intensidade dramática e o ponto alto é indiscutivelmente a fotografia de Charles G. Clarke com preto e branco em cinemascope. O aspecto físico e psicológico inerente a cada um dos personagens de destaque está inteiramente deturpado ou convencionalizado (como no caso de Dan Dailey ou Jayne Mansfield) com a rara exceção da Mildred.
Jornal do Brasil
10/11/1957