jlg
cinema

  rj  
Um pequena obra-prima

Numa paciente análise retrospectiva da carreira de Samuel Fuller não seriam encontrados elementos em número suficiente que facultassem a cogitação dele ser, mesmo em estado potencial, um realizador capaz de levar a efeito uma película de categoria invulgar. Um artesão eficiente, bem manipulador dos recursos de ordem técnica – isso, sem dúvida, assumia um caráter patente. Jamais, entretanto, um inovador e nem também a tempera dos mestres. É verdade que, de um modo geral, sempre esteve cingindo estritamente ao interesse comercial da indústria. Nunca, todavia, permitiu a manifestação clara de suas possibilidades que oferecem a antevisão de um viável grande salto qualitativo.
“Casa de Bambu”, até então sua melhor fita, não passava de um bom espetáculo. Ritmo vivo, bom uso da cor, mas, por detrás de tudo, o alvo principal era o mero entretenimento cinemascópico, numa fase em que este processo ainda atravessava a aura da novidade. O período inicial com os repisados motivos de explorar o novo achado: as filmagens “in loco” aproveitando ao máximo o imediatismo do pitorescamente panorâmico da região/background.
A história e as virtudes de um jornal e uma cidade em “Dama de Preto”, através de um “script” pouco rico em situações eminentemente cinematográficas, somente tiveram de sua parte um tratamento superficial que conferia uma certa dignidade à monótona trama.
E “Pick-Up at South Street” (Anjo do Mal), embora delineasse características mais sugestivas ao “metteur en scène”, estava vinculado a um deplorável macartismo, terminando com a mais absurda moral da fábula já formulada por Hollywood nos últimos tempos: é preferível ser ladrão do que comunista. Como exemplo ímpar do grau de imbecilidade a que pode chegar a intolerância humana, digno das caveirinhas e caveironas que de vez em quando aparecem aqui pela cidade, o enredo também continha diálogos, bem forrados em seqüências de caprichados jogos de claro-escuro, em que Jean Peters, no papel de uma “simpática”, meretriz-vigarista, se excusava frente a Richard Widmark, um meliante “patriota”, de não ser uma “vermelha”. Não é necessário recordar que, no final, ambos liquidaram com a quadrilha de espiões.

***

Depois de “High Noon”, de Fred Zinneman, e “Shane”, de George Stevens, que inclusive proporcionaram um contorno definitivo às duas correntes do “western”, o puro e o psicológico, não houve, no genro, nada melhor do que “Dragões da Violência” (Forty Guns). Mesmo “Rastros de Ódio”, de Ford, e “Sem Lei e Sem Alma”, de John Sturges, aqui exibidos ultimamente e que atingiram um nível acima do comum, não suportam um paralelo com a película de Fuller. E muito menos os melhores exercícios de Anthony Mann. E com o classificar “Forty Guns”? Na periferia, uma quase tragédia grega modernizada por um Truman Capote menos mordaz. Na infra-estrutura, um calculado processo de desmistificação de alguns fatores básicos na concepção do próprio “western” e também uma fábula da liberdade contra a força, dos que vieram construir para civilizar contra aqueles cujo poder se ampara na ambiência selvagem, os barões do gado, os senhores totalitários que em determinada época do desenvolvimento de uma região embira visando fins lucrativos não deixaram de lavrar a sua contribuição para o progresso. Chegado este a um ponto de maturidade em seus instrumentos que impelem a evolução, novos valores se estratificam e exigem o descarte do antigo regime. Nas entrelinhas de “Forty Guns” pode-se denotar a arma como o principal personagem. Se o responsável utilizou um critério metafórico a fim de manusear com a trama foi em virtude da intenção de eliminar o realismo direto num filme em que a violência é uma constante essencial. O clima de ambigüidade que paira sobre a fita, o aspecto bizarro de algumas passagens, o teor propositalmente novelesco de alguns personagens e situação, consegue justamente evitar que a obra ingressasse na esfera do episódico mediante a simples imitação do real. Destarte, essa violência orgânica surge qual uma entidade destituída de caracterização temporal e espacial. A aparência do gratuito confere a ambigüidade almejada e o diretor está em condições de operar com o argumento tal qual este fosse apenas um exemplo, uma figuração de algo muito mais amplo, cujos fluxos e recorrências a própria narrativa com seus liames lógicos era insuficiente para acondicionar. Daí, as seqüências de assassinato, de brutalidade e terror nunca ferem o nosso cerne em função do personagem que é atingido. São, antes de tudo, as facetas de um ritual grotesco pela sua selvageria e os seres humanos focalizados funcionam como material de estilização de um painel barroco.
Difícil apontar qual das duas correntes seria a mais condizente para colocar “Dragões da Violência”. Não existe um impacto na esfera psicológica. A tensão existente entre os personagens não haverá de se evolar de acordo com o decorrer das ações. Além disso, o “far-west” é um cenário essencial para o celulóide, já que qualquer adaptação a um local diferente cercearia um dos eixos radiais de sua própria contextura estrutural: o provesso de corrosão de certos valores mitológicos ao “western”. O “gunfighter”, Barry Sullivan, numa cena excelente, em que conversa com os dois irmãos, através de um original jogo de cabeças no grande primeiro plano, mostra o seu revólver para o caçula e diz que aquilo já não importa mais e que ele, como o famoso matador, já é também uma entidade superada. Tal qual Shane, o protagonista de agora é imbatível no gatilho e chega de fora. Porém, no desfecho, em lugar de partir como herói de Stevens, consciente de sua sina irremovível, ele toma a charrete e vai com a certeza de que a antiga aura se findou. Aqui, o “happy-ending”, aparentemente um concessão, funciona. Provavelmente se casará com a novelesca dama do cavalo branco e será rancheiro. Paradoxalmente, “Forty Guns” é uma apologia da realidade, pois, lidando com elementos tipicamente pertinentes à esfera do romanesco, lança mão deles exatamente para destri-los. E por isso n˜åo deve ser considerado um “western” dentro dos moldes clássicos. Quando se reveste de suas feições é para abalar os alicerces de sua integridade.
Do começo ao fim, a pelicula está dosada com uma linguagem cinematográfica impecável, eivada de soluções inventivas, através de seqüências admiráveis, algumas inobjetavelmente antológicas.
A tomada inicial, com a chegada dos três irmãos numa charrete, efetuada mediante uma bela panorâmica vertical e com o posterior encontro da mulher e dos quarenta cavaleiros, já permite denotar as boas intenções de Fuller. A seguir, a passagem do tiroteio e da desordem provocados na cidade pelo irmão mais moço de Jessica (Barbara Stanwick) estão muito bem filmadas (movimentação de câmera eficiente, sempre pondo em destaque alguns detalhes de efeito com caráter bastante vivaz) até o primeiro encontro deste com Barry Sullivan, após ter o jovem assassinado covardemente o delegado quase cego. Enquanto Sullivan marcha em direção ao rapaz, o cinemascope inteiro é tomado pelos dois olhos do homem decidido, em crescendo constante, covardemente o delegado quase cego. Enquandas pernas do inimigo e da mão com o revólver que não chega a apontar para o estranho que se acerca.
Outra cena admirável e que põe Samuel Fuller em evidência como inventor privilegiado é a do idílio bizarro, entre o segundo irmão de Sullivan e a filha do fabricante de armas. Num dado instante, ele mira-a através do cano do rifle e novamente todo o espaço da tela é ocupado pelas estrias negras da parte interior, com o rosto dela, em moldura redonda, ao longe. A câmera se aproxima, face vai aumente até que, em magnífico corte, ambos já estão se beijando.
Antológicos também o trecho do casamento e do enterro logo depois. Noutra tomada de cima, vemos um fotógrafo algo desajeitado ao passo que os noivos saem da igreja sob chuva de arroz. Passamos para o grande primeiro plano quando Sullivan vai beijar a nova cunhada, um tiro súbito mata brutalmente o noivo. Num corte rápido, após os breves instantes de surpresa, a noiva já está de preto ao pé de um túmulo e uma carruagem negra começa a ganhar toda a cena num “travelling” lento e curto, enquanto Jidge canta uma balada. Esta passagem é de uma pureza visual absoluta.
Ainda podemos chamar a atenção para as seguinte seqüências:
a) assassinato de Swain, auxiliar do delegado (Dean Jagger em preciosa interpretação) quando estava preso. Um tiro, ele cai, e uma das derradeiras frases que consegue balbuciar é um pedido para que lhe endireitem as pernas. O diretor joga novamente com as cabeças, o morto, Jagger e Sullivan. Quando Swain morre, um grosso filete de saliva escorre pelo canto da boca, ganhando o seu rosto uma impressionante máscara.
b) as passagens do tufão que surpreende Jessica e o protagonista em plena campina. Nestas seqüências, extrai o “metteur en scène” ótimos efeitos na penumbra, terminando com a fuga de ambos para dentro de uma cabana pequena. No “shot” imediato, a câmera vem se aproximando de cima até focalizar de perto o corpo dos dois a conversar pausadamente, depois de Barbara ter-se entregue a ele. Aqui, o rigor e riqueza do enquadramento, juntamente com a precisa utilização das tonalidades do preto-e-branco e claro-escuro, possuem caráter marcante.
c) a emboscada perpetrada contra o protagonista, obedecendo a uma técnica de sucessão de planos, sublinhada muitas vezes pelo silêncio, exemplar e francamente audaciosa. Ele julga que o inimigo esta do outro lado da parede da casa, quando lá se coloca outra pessoa que serve de chamariz. O verdadeiro, de uma janela e com rifle em punho, espera que a vítima fique em posição de alvo ideal. Numa tomada arrojada, Fuller firma a câmera por debaixo do queixo de Barry Sullivan, abrindo um perfil quase inusitado de sua face, enquanto por cima vemos o cano da arma emergindo da janela.
d) o duelo final, à hora em que o rapaz usa sua irmã como escudo, julgando que o adversário não vai atirar. Este, entretanto, contra toda expectativa, alveja-a, ela cai, e então descarrega o revólver sobre o outro, que no primeiro plano é sacudido pelo impacto de cada tiro. Depois Sullivan passa por cima do corpo de Jessica e diz para um espectador da cena chamar o médico que ela se salvará. É o “gunfighter” infalível que pôs a bala propositadamente em região que não era mortal.

***

Com um acompanhamento musical excelente e a extraordinária fotografia de Josaphe Biroc, em tudo e por tudo “Dragões da Violência” é uma realização invulgar. Foge por completo a qualquer concepção de narrativa encontrada na linha ordinária de filmes anteriores do gênero. Renova por completo esse processo de narrativa no cinema, trazendo outros elementos valiosos em sua linguagem e sem o apoio dos recursos de “flash-back”. Como Bergman, Fuller vai ao barroco, mas não utiliza este método retroativo. As duas únicas restrições cabíveis não ferem o âmago da estrutura. Constituem-se no “happy-ending” que, malgrado envolva um cunho funcional para cristalizar uma idéia de satirizar o melodrama a partir de seus próprios fatores constitutivos, surge como uma “addenda ad marginem”, da contextura rítmica do espetáculo. E também na dose de frieza dos intérpretes principais, Barbara Stanwyck e Barry Sullivan, ela escapando da forçosa concepção irônica de seu papel, ele, como que algo aturdido com o que estava fazendo. Talvez injunções de ordem comercial tenham causado a presença de ambos, onde nomes de menor projeção poderiam se sair bem melhor. Contudo, e ao contrário da muito boa fita de Sidney Lumet, “Doze Homens e Uma Sentença”, também exibida na mesma semana, a interpretação, em Forty Guns”, possui uma importância secundária em face de outros aspectos. E este celulóide de Samuel Fuller é, por seu turno, o melhor cinemascope já lançado aqui.

Jornal do Brasil
16/12/1958

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
Jornal do Brasil 12/05/1957

Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
Jornal do Brasil 16/06/1957

Ingmar Berman na comédia
Jornal do Brasil 30/06/1957

562 registros
 
|< <<   1  2  3   >> >|