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Herbert Read: o poeta e o cinema

Tôda obra de arte e produto da imaginação criadora e, para se tornar merecedor do nome de arte, o cinema deve ser
também um produto da mesma fonte.
Entretanto, antes que uma tal sentença possa querer dizer em demasia, devemos definir aquela vaga frase "imaginação criadora". Particularmente, não gosto de usar a palavra "criadora" nesse contexto, pois ela imputa ao artista um papel de endeusamento que fica mal para o seu conceito. Não há nada de novo sob o sol e tudo que os grandes artistas podem fazer é descobrir novos ajustes para os elementos existentes. Isso realmente não se constitui em ser criador: é recriativo, divertido, esclarecedor, instrutivo e comovedor. Mas, minha desculpa por utilizar a palavra "criadora" em ligação com "imaginação" se consiste na de implicar algo a mais do que uma mera atividade mental. Não somente imaginação, porém imaginação incorporada, encontrando seus equivalentes objetivos através da vista do som e do tato. A imaginação traduzida para formas, tons e contexturas sensíveis.
Mas, imaginação, ela própria, é uma palavra vaga. O que queremos dizer com ela? Seu significado tem sido bem discutido por há cêrca de dois mil anos, como o foi muito curadamente por Aristóteles e, de Aristóteles, a discussão passa para a grande tradição da escolástica medieval; e, da tradição, passou pela escola da crítica romântica e principalmente neste País, por Coleridge; e ainda estamos hoje discutindo. Entrementes, surgiu uma escola de filosofia no século XVIII, liderada por Descartes, que negava a existência da imaginação, ou então encarava-a como tão inferior à razão que, destarte, aquela poderia ou deveria ser ignorada. Aquela escola de filosofia manteve o terreno entre o declínio da escolástica e o aparecimento do romantismo e, seu período de predominância é às vêzes denominado de A
Idade da Razão ou Iluminação: trata-se de uma época de estilos derivados na arte. A imaginação, podemos concluir, é essencial para a arte, embora possa ser situada em campo oposto ao da razão. Uma Obra de arte racionai - tal parece uma contradição em têrmos e creio que o seja: é uma contradição que se envolve nos objetivos e métodos de muitos produtores cinematográficos modernos.
A discussão, que correu séculos, a respeito de imaginação e, à qual me referi, finalizou por forjar a distinção entre
ingenium e fantasia: entre fantasia e imaginação. Essa distincão não ficou sempre clara porque com aquêle desejo depressivo de reduzir tôdas as coisas a uma unidade, que distingue os filósofos, havia sempre uma tendência a reduzir o ingenium e a fantasia a uma faculdade e a denominá-la imaginação. Tem, necessariamente, sido uma ambição vã, pois atualmente dois processos diferentes estão implicados nisso.
O ingenium pode ser definido como a capacidade para perceber ou descobrir semelhanças entre dois objetos, de outra forma desiguais. Nós dizemos que uma pessoa é tão fria como um pepino, pelo qual queremos explicar que percebemos êsses elementos comuns de frieza em dois objetos tão dissemelhantes como uma pessoa e um pepino. Ou, descrevendo a atividade de um homem que está sustentando o preço das ações numa bôlsa de valores, falamos que êle está "congelando" algo para um bom objetivo, assim como a água congela para esfriar metais. Esses são exemplos elementares de simile e metáfora, e a arte poética tem sua origem em tal atividade. Quando a escolha dos têrmos nessas comparações é arbitrária (como o é no caso do pepino, pois outras coisas são frias além do pepino) a atividade pode então ser chamada de fantástica ou imaginária, e se constitui no que Coleridge nomeava como uma forma de memória emancipada da ordem do
espaço e do tempo; é uma atividade volitiva envolvendo
a opção - a escolha de coisas objetivas e definidas que podem ser transportadas para alguma inspiradora associação.
Porém o ingenium, a fantasia, o espírito, ou o quê fôr pelo qual o denominemos, não exaure as atividades da mente comprometida na criação literária. Existe um outro processo o qual se inicia com um estado de tensão
emocional e que, para êsse núcleo de sentimentos, atrai os objetos ou eventos que concretizem ou expressem a sensação. Tais objetos e eventos não são mais arbitrários, mas exatos e necessários. Tudo, como o fôsse, deve se conformar com a côr e a fôrça da emoção original. O poder da imaginação, para citar novamente Coleridge, se revela a si próprio num balanço e numa reconciliação de "um estado emocional maior que o habitual com uma ordem também dêsse teor", o julgamento sempre desperto e o seguro autodomínio, combinados com o entusiasmo e o sentimento profundo e enérgico".
O cinema produz seus efeitos mediante imagens projetadas. Essas imagens projetadas na tela estão associadas, de imediato, com as imagens em reserva na memória do espectador e, através da associação ou disposição das mesmas, fluem as emoções de surprêsa, encanto, prazer, orgulho ou tristeza, pelas quais passamos nas casas de exibição.
A partir dessa dependência com a imagem visual, surgiu a noção de que o filme só pode se afirmar como arte evitando tôdas as abstrações, e se limitar rigorasamente à imagem concreta. Salvador Dali, que escreveu o cenário para um filme ultramoderno, chamado Babaouo, escreve da seguinte maneira:
"Ao contrário da opinião comum, o cinema é infinitamente mais pobre e mais limitado para a expressão dos processos reais de pensamento do que a literatura, a pintura, a escultura ou a arquitetura. Abaixo está apenas a música, cujo valor espiritual, como todo mundo sabe, é quase nulo. O cinema está fundamentalmente ligado, em virtude de sua própria natureza, à superfície sensorial de fenômenos, vulgar e anedótíca, à abstração, a impressões rítmicas, numa palavra, à harmonia. E a harmonia, o sublime produto da abstração, está, por definição, no outro extremo do concreto, e consequêntemente, para a poesia.
A sucessão rápida e contínua de imagens na tela... estorva todas as tentaivas para consumar o concreto e anula na maioria das ocasiões (graças ao elemento memória) sua qualidade intencional, afetiva e lírica. O mecanismo da memória, sôbre o qual essas imagens atuam de uma maneira excepcionalmente direta, tende à, mesmo nela própria, desorganização do concreto, com vistas à idealização.
Na existência lúcida, o propósito latente e a fúria do concreto tornam-se quase sempre submersos no esquecimento, mas voltam outra vez à superfície, mediante sonhos. A poesia do cinema exige, mais do que qualquer outra espécie de poesia, uma metamorfose completa de sonho na irracionalidade concreta antes que possa atingir a um grau real de lirismo".
E, baseado nessa idéia, temos na França o filme surrealista - um filme que é completamente irracional no que se refere
ao seu conteúdo, que somente pode ser comparado com o sonho, mesmo com o pesadelo, e o qual obtém tôda a sua fôrça e vivacidade por possuir as mesmas características que o sonho. A película mais avançada em tal categoria é “O Sangue de um Poeta" (Le Sang D'un Poète), de Jean Cocteau, com música de Georges Auric. Trata-se de um experimento vital na construção de uma fita e é o trabalho de um poeta - não de um "cameraman", de um especialista, de um cineasta, ou qualquer que seja a denominação que se deseje conferir ao criador de um filme, mas de um homem que é primeiramente, e antes de tudo, e sempre,
um poeta.
Essa espécie de fita preenche exatamente, creio, a nossa definição de fantasia - uma forma de memória emancipada do espaço e do tempo. Seu impacto depende de sua concreção, sua irracionabilidade e de sua fertilidade de imagens, estranha como um sonho. Admite-se que seja drástico - como justamente o é a poesia lírica em sua expressão. Rejeita o lógico: procura o impacto lírico, a sensação direta do concreto. As únicas fitas comerciais que um superrealista como Dali pode aceitar são, aparentemente, aquelas dos irmãos Marx. Contudo, os elementos que imperam num filme como o de Cocteau ou "Animal Crakers", são os que prevalecem na maioria dos bons filmes: a súbita projeção de um a imagem concreta para representar uma idéia abstrata. A projeção de duas imagens a fim de sugerir uma similitude: em "Turksib", o remoínho das águas seguido pelas rotações vacilantes dos carretéis de algodão - um vivo esfôrço concreto para transferir idéias complexas de processos subjacentes de causa e efeito dinâmicos. O perigo que ameaça essa categoria de películas é o cIichê: a repetição da mesma imagem, filme após filme - quantas vezes não vimos o "close-up" do trigo ondulando contra o céu, a fim de sugerir a paz da natureza, das rodas e do apito de uma locomotiva, a fim de sugerir uma viagem, velocidade ou fôrça e dai por diante. Mas tal lacuna é devida a uma falta das faculdades as quais estão tão conspicuamente ausentes do cinema, de um modo geral, as faculdades que devem ingressar no filme para fazê-lo a grande arte que a potencialidade de sua técnica insinua que um dia será - isto é, a faculdade poética, ela mesma. A ausência dessa característica no processo da produção cinematográfica é motivada não apenas pela pobreza da fantasia no cinema, mas na maioria das vêzes, por uma falta total do filme de imaginação.
O filme de imaginação - o filme como uma obra de arte, nivelando-se com o grande teatro, a grande literatura e a grande pintura - não virá até que os poetas entrem no estúdio.
Conheço o que é imediatamente colocado contra essa idéia - a necessidade de trabalho nos têrmos estritos de um novo meio, explorando uma nova técnica: a câmera é a musa do cineasta: abaixo com o filme literário e assim por diante.
A respeito de tal ponto de vista, tenho somente duas coisas a dizer: primeiro, que em tôda arte existe uma boa porção de palavreado sôbre técnica. A maioria das técnicas pode ser aprendida em poucos dias, no máximo num ano ou dois. Mas nenhum acúmulo de eficiência técnica criará uma obra de arte em qualquer meio se o gênio criador ou imaginativo estiver ausente. Naturalmente que a técnica deve atingir a sensibilidade do poeta: êle deve amar seu meio e nele trabalhar com entusiasmo: todavia, a visão necessária para criar não somente os meios, mas o fim – êsse é o dom da providência e nós o chamamos de gênio poético.
Em segundo lugar, aquêles que negam possa haver alguma conexão entre o cenário e a literatura parecem-me possuir uma concepção errada, não tanto do cinema, mas da literatura. Aparentam encarar a literatura como algo polido e acadêmico, em outras palavras, como algo destituído de qualquer mérito; superaborrecido, composto de gramática correta e de frase cicerônica de alta sonoridade. Tal concepção revela a fraqueza de suas sensibilidades. Se me fôsse indagada a mais distinta qualidade da boa prosa, eu a expressada em apenas uma palavra: VISUAL. Reduza-se a arte de escrever a seus fundamentos e se chega a êsse simples objetivo: emitir imagens por meio de palavras. Mas, emitir imagens - fazer que a mente olhe. Projetar naquela tela interior do cérebro um filme de objetos e fatos, fatos e objetos movendo-se em direção a uma balança e a reconciliação de um estado emotivo além do normal com uma disposição além do comum. Tal é uma definição de boa Iiteratura - da realização de todo bom poeta - de Homero e Shakespeare a James Joyce e Henry Miller. É também a definição do filme ideal.


nota: sir herbert read já é um nome por demais conhecido no campo das atividades artísticas. diversas são as suas incursões nos mais variados assuntos como se poderá atestar pela imensa lista de suas obras publicadas: "the true voice of feeling", "the grass roots of art", "the meaning of art", "the philosophy of modern art", "form in modern poetry", "a coat of many colours", "education through art", "icon and idea", "art and iudustry", "the english prose style", "anarchy . and order", "education for peace", "phases of english poetry", "annals of innocence and experience", "art and society" e outros mais. é também poeta de certa qualidade, com alguns livros publicados e, outrossim, prosador; embora seu livro, "the green child", com o qual experimentou a ficção, se nos afigure um fracasso o presente trecho, publicado originalmente em cinema quarterly, e depois incorporado ao volume "a coat of many colours" é bem uma amostra do diapasão de herbert read, seus vais-e-vens de observador arguto, impressionista, acertando em cheio aqui, falhando ali - assim, por exemplo, diz coisas dosadas de grande lucidez, como o que se refere à contraposição de duas imagens concretas para sugerir o abstrato, onde, nesse ponto está quase em eisenstein; por outro lado, no final, chega a conclusões inteiramente fora de foco no que se relaciona com a real problemática do cinema. isto, em parte, corre em paralelo com a sua concepção acirrada da missão do artista de desenvolver ao extremo a sua liberdade, já que êste, juntamente com o filósofo, são os detentores em maior número do que se denommia liberdade essencial (vide "anarchy and order"). daí, a sua simpatia para com o movimento surrealista, o qual melhor julgava aparelhado ideológica/ esteticamente para cumprir tal escôpo, e cuja atuação procurou interpretar nesse sentido, principalmente no capítulo "o surrealismo e o princípio romântico", de seu bom livro: "the philosophy of modern art".
read não é um especialista em cinema, como um eisenstein, um prodovkin, um roger manvell, um bela balasz. seu depoimento, tal como o de suzanne langer, que também já transcrevemos, é o de um homem de cultura que assesta as antenas de sua enorme experiência para uma arte, a fim de extrair observações, baseado no conhecimento mais profumlo que possui das outras.

Jornal do Brasil
15/09/1957

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
Jornal do Brasil 12/05/1957

Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
Jornal do Brasil 16/06/1957

Ingmar Berman na comédia
Jornal do Brasil 30/06/1957

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