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Ricardo III

A transposição para a tela das obras de Shakespeare suscita de um modo geral a invocaçao de uma série de problemas no que diz respeito à adaptação das mesmas. Não estamos diante do filme, mas sim do filme sôbre, porque em se tratando de Shakespeare o que procuram os realizadores é colocar o cinema a serviço de um temperamento criador de um ciclo dramático solidificado através de uma vasta cadeia de obras e, paralelamente, de um estado de ser, um fluxo do pathos, já miticamente qualificado e cristalizado. Existe, no caso, uma abdicação parcial de criar cinematogràficamente, não por razão de se desprezar os recursos eminentemente próprios da sétima arte, porém em virtude de todo o complexo de estruturação da película se condicionar de início a um determinado efeito, análogo ao proporcionado no habitat original - no caso presente; o palco. É o fator do tema a priori, de certo núcleo conteudístico que forçosamente terá que se espraiar. A medida da eficiência se configura na medida de validade em que Shakespeare vai atuar sobre nós, via celulóide e projetor.
Evidentemente que tôdas as fitas partem de um argumento. Todavia, os diversos processos de tratamento formal postos em ação pelos seus responsáveis, a partir dêsse material bruto (roteiro, direção, faixa sonora, fotografia, cenografia, etc.), é que irão conferir o caráter autêntico do filme, baseado nos efeitos que êle propicia. Somente quando êste estiver pronto é que passará a ter a sua vigência própria, de acôrdo com a sua potencialidade expressiva. Por isso, arte e forma. Existe o filme e não a idéia do filme, assim como não existe o poeta antes no poema.
Quando porém o objetivo é filmar Shakespeare não são apenas as condições iniciais; obrigatoriamente idênticas, no cinema, às do teatro, que ficam em jogo, mas também a necessária reciprocídade dos efeitos. O cineasta, dotado de instrumentos diferentes, terá que despertar sensações análogas às atingidas mediante o palco, onde inclusive a presença física do ator é um elemento preponderante.
Não foi outra a causa pela qual nos firmamos, a fim de tecer a restrição básica a "Cárcere sem Grades", de Fred Zinneman. O "metteur-en-scène" aparentemente se estribou numa fidelidade rigorosa (1) a efeitos da peça original que, por si só, não eram válidos para ativar em ampla escala o jôgo sensoriaI e intelectual do espectador cinematográfico. Zinneman poderia partir do argumento, contudo, daí em diante, que se libertasse dos resultados visados no prisma dos fatôres temáticos pré-estabelecidos. Pois, se compararmos tais fatôres iniciais, não há medida de aproximação, em grau de intensidade patética, entre o "show" de neurose que é "A Hatful of Rain" e Shakespeare ou, para ficarmos no século XX, "Uma Rua Chamada Pecado", de Tenessee Williams, com a qual Elia Kazan realizou uma autêntica obra-prima, o seu melhor filme.
Feita a necessária ressalva, vamos à questão fundamental que concerne à adaptação cinematográfica de uma obra teatral e que comportaria a indagacão do interessado menos avisado de que se em princípio não seria suficiente a mera filmagem da representação da peça. Nesse ponto, volta ao foco aquele elemento preponderante que é a presença física do ator. Se no palco tal elemento, mediante o contato imediato e direto com o público, se torna um fator de irretorquível vivacidalle para o desenvolvimento da peça, a palavra (monólogos, diálogos, exclamações. etc.), adquirindo um vigor especial, na tela a fôrça se dilui fatalmente, caso o câmera permaneça numa posição estática para focalizar todo o espetáculo. E o constante desdobrar de diálogos e recitativos, sempre visualizados através de uma só perspectiva acabaria por provocar o advento de pesada monotonia, diminuindo sensivelmente o interêsse da assistência. Não estamos conjeturando a ausência de espetáculos vasados em meios dessa natureza. Eles podem existir, mas apenas funcionam como veículo à satisfacão de curiosidades pertinentes a várias espécies de motivações; jamais, no entanto, envolveriam em si algum problema de ordem estética em virtude da deturpação operada contra os aspectos essencialmente artísticos do cinema.
Destarte, é preciso suprir a falta dêsse elemento que se constitui em força motora para o vivaz desenvolvimento das ações no palco. Por outro lado, contudo, determinadas características essenciais do original não podem ser transformadas sem que o zoneamento de interêsse temático não sofra também uma modificação e aquela fôrça mítica já imanente fique deturpada. E grande parte do trabalho de transposição estaria sacrificada se não houvesse um equivalente dentro das próprias condições da peça original que se erguesse na tela para compensar o evidente decréscimo de estímulo da fala do ator e que, portanto, da mesma maneira viesse a manter o núcleo tensional constantemente dilatado. Este equivalente surge na maioria das vêzes corporificado na ação concreta. Histórias envolvem fatos e êstes compreendem ações que justamente no palco não encontram usualmente possibilidades de emprego para uma amplitude de efeitos. No teatro a ação física, concreta, não encontra terreno que lhe propicie mais que um pequeno espaço de tempo. Ela surge como consumação derivada dos múltiplos impulsos deflagrados por um jogo de narrativas, diálogos, monólogos, etc. (2). No cinema o campo visual oferece dimensões infinitas para que a ação se desdobre em largo espaço de tempo; rica, por conseguinte, no que tange a uma amplitude de efeitos. Nisso é que os realizadores se baseiam para que se consiga o indispensável equilíbrio, para a criação de um ritmo dinâmico, orgânicamente entrosado com o desenrolar psicológico da trama.
De qualquer forma, a série de modificações que o original sofre dentro do roteiro não evita que aquele se torne desfigurado em alguns sentidos e exacerbado noutros, mesmo quando o cineasta esteja passo a passo prevenido. Isso, entretanto, já corresponde ao plano dos possíveis desajustes de contrôle na tarefade execução, quer seja no écran ou na ribalta.
O cinema com sua pujante riqueza de recursos de caráter visual pode dar corpo a diversos eventos que no original são apenas mencionados pelos personagens e fortalecer devidamente o ritmo dinâmico. Logicamente não se deve inferir que tais recursos irão se congregar somente tendo em vista a movimentação exterior, a ação extrínseca. Ao contrário, o ator continuará a ser explorado pela câmera. A gesticulação e o fraseado imponente perderão no entanto grande porção de sua ascendência em favor das nuances de expressão facial, que exatamente no palco assume uma importância relativa pelas dificuldades de percepção por parte do público em todos os detalhes, mas que na tela, mercê do "close-up", vem a se constituir numa parcela relevante no que se refere à interpretação.
Muitas são as realizações cinematográficas, cujos roteiros são adaptações teatrais, que foram coroadas de enorme êxito artístico. Olivier já tinha "Henrique V" e " Hamlet"; há o "Macbeth", de Orson Welles (e do seu Otelo alguns dizem maravilhas); Mankiewicz levou a cabo um excelente "Júlio César" e o italiano Renato Casiellani criou uma também excelente versão do "Romeu e Julieta", à sua moda, que chegou a superar a mais antiga de George Cukor. Fora do âmbito de Shakespeare, existem sucessos como "Volpone", de Maurice Tourner, "Pygmalion", de Asquith & Howard, e ultimamente pode-se recordar "Uma Rua Chamada Pecado", de Elia Kazan, "Chaga de Fogo", de William Wyler, "A Morte do Caixeiro Viajante” de Lazlo Benedek, ou "Cyrano de Begerac", de Michael Gordon.

***

“Ricardo III” talvez tenha sido a obra cuja adaptação mais trabalho exigisse de Laurence Olivier, porque não só a peça o solicitava, mas também por razão de se denotar facilmente a existência de uma ambicão bem maior do autor no terreno inventivo, com o interesse em imprimir soluções de arrôjo, a fim de conferir ao espetáculo um caráter insólito, aliás, um reflexo do espírito do original.
Dentro desse propósito o ator-diretor-produtor inseriu modificações de vulto na contextura da peça, desde o princípio, quando o famoso monólogo de Richard sofre um corte e muda de cenário. Aqui, por outro lado, o ator leva a cabo o seu recitativo encarando a audiência, o que não fizera nas ocasiões anterioes. Isto se prende, especialmente, ao interesse em colocar o seu personagem em nítida evidência, a de monstrar que ele será o único centro propulsor de tôda a tragédia.
No final, substitui o combate singular entre Ricardo e Richmond (onde a simbologia shakespereana do expurgamento da natureza vil adquire um aspecto unitário e, concentrado) por uma batalha, que termina com o impressionante trucidamento do rei.
Outras passagens ganham no filme o seu complexo de ação física, como o assassinato de Clarence ou dos dois príncipes.
Até que ponto tôdas essas alterações conferiram o vigor necessário? A pergunta requer uma inspeção sôbre o trabalho de modernização que o diretor faz na concepção do grande dramaturgo inglês, ao elidir boa parte do aspecto demoníaco do protagonista e, por conseguinte, dando à tragédia uma raiz exclusivamente psicológica (3). Embora o processo de modernizar não atendesse a objetivos tão radicais como os de Castellani que, de acôrdo com a sua formação de neo-realista puro, humanizou o grande trágico, extraindo a imponência dos seus personagens, torna-se bem claro que o entrecho de "Ricardo III" sofre uma interpretação aplicada aos receptáculos de uma nova época, consumando-se num· critério de estilização alheio ao "mood" shakespereano. Alguns trechos, porém, lucraram muito pouco através das modificações e, em consequência, em dados instantes o núcleo de intensidade dramática se evola ou então não apresenta a fôrça que era legítimo esperar. A cena da batalha, que é bem feita, mas não das melhores e nem de perto o que se aguardava, não traz refôrço de espécie alguma que pudesse provar o fato de ser cinesteticamente mais adequada do que o combate singular. Também a noite anterior em que Ricardo é tomado de alucinações durante o pesadelo, aparece construída mediante uma sequência plena de recursos dos mais repisados, muito pobre em efeitos, É justamente uma das passagens em que fica dissipado o caráter demoníaco de personagem. - Houve intenção de calcar um sentido menos satânico ao personagem. Para Shakespeare, Ricardo é fisicamente um histrião em virtude de ser uma natureza vil,_ representante do demônio.
Havendo uma certa desigualdade no tratamento de várias cenas, a fita perde o seu vigor em múltiplos instantes, quando então sobrevém uma frieza que paira sôbre o espetáculo durante determinados trechos. Frieza, mas nunca monotonia, pois se há uma discrepância no ritmo psicológico, jamais entretanto a película se perde inteiramente em seu aspecto visual. O uso da côr é inteligente e eficaz, muitas vêzes com a predominância das tonalidades mortas e o repentino contraste de um vermelho vivo. O décor, simples, sóbrio e estritamente funcional. Em poucas ocasiões é sacrificado em nome das exteriorizações magnificentes. Dentro dêsse esquema, os personagens e os jogos de detalhe surgem constantemente à luz de uma concepção objetjva, que os põe logo nos limites de sua valencia precisa e em perfeita concomitância com a ação que se desenrola. Algumas tomadas ou concepções de enquadramento parecem inclusive sofrer a influência de um Eisenstein de "Ivan o Terrível", na sequência em que Ricardo assiste através de uma abertura na parede à condenação de Clarence por Edouard IV, ou de "Alexandre Nevski" na chegada dos adversários para a batalha final, vista de longe. É assim a fotografia de Otto Heller um dos pontos altos do celulóide.
No campo da interpretação sobressai a figura de Laurence Olivier em estupenda atuação. Talvez o seu Ricardo seja ainda melhor ao seu Hamlet. Incomparável riqueza de nuances de reação e de modalidades no tom da voz. Gesticulação impecável. É em tudo um dos grandes atores do século.
No trecho em que seduz Lady Anne ou naquele em que, no trono, despreza as solicitações de Buckingham vai aos requintes mais fabulosos.
Ralph Richardson, como o Duque de Buckingham, tem por seu lado uma admirável interpretação, eficiente e maleável em tôdas as situacões. Claire Bloom, muito bem dirigida, é uma Lady Anne convincente. Sir Cedric Hardwick, uma boa máscara, bem como sempre, em Edouard IV. Stanley Baker, uma excelente figura no seu Richmond (Henrique Tudor) e John Gieguld, no papel de Clarence, tem menor oportunidade na tela do que o seu Cassius, em "Júlio César".
Apesar de comportar uma série de restrições no tocante à elaboração de seu roteiro, embora seja inferior às outra peças de Shakespeare que Laurence Olivier filmou, "Ricardo III" é ainda uma produção de elevada classe, chamando novamente a atenção para o rigor e a maestria do seu diretor para lidar com o assunto, para a infalível dignidade com que pauta todos os espetáculos.

(1) - Pode ser que as complicações com a censura tenham sido uma ameaça ao realce de outros possiveis aspectos da peça. com tratamento vasado em melhor autenticidade, coibida todavia a sua divulgação pelo cinema.
(2) - Deve-se levar em consideração que estamos nos referindo à técnica do teatro em Shakespeare. Isso não envolve, portanto, outras conquistas do teatro moderno.
(3) - Quem melhor observou esse aspecto do filme foi Henri Lemaitre em sua crítica a "Richard III" no número 63 de téléciné, correspondente a janeiro-fevereiro de 1957.

Jornal do Brasil
26/01/1958

 
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