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Rocco e a obra de Visconti

Não é revolucionário o cinema de Visconti, na medida que o são obras recentes, como Hiroshima Mon Amour, ou A Bout de Souffle. Não se trata de um diretor preocupado, em primeiro plano, com uma dialética das virtualidades do seu instrumento - a câmara. Visconti apenas acercou-se do espírito de um produto revolucionário com o seu primeiro filme e, talvez, ainda o maior entre os que realizou: Obsessão. Na época, antecipara-se ao neo-realismo e consumara uma estilizacão do realismo que era toda uma lição aos próprios mestres franceses da década de 30/ 40: Duvivier, Carné, Renoir .
Contudo, não existe, na Itália, cineasta de maior coerência e unidade em sua filmografia. Esta possui apenas seis títulos, mas cada qual (somente não conhecemos Belissima) representa uma conquista severa do trabalho consciente, sempre com um objetivo definido, fundamente pensado e pesado antes de sua concretização no écran. É um diretor que tem um estilo marcado, preciso e vigoroso – sabe até onde vai o seu domínio - e visa a uma determinada harmonia de sua obra total, no sentido de uma espécie de inter-relação entre cada película. Seu estilo capta um realismo funcional, isto é, não o realismo tout court, vazado em cenas cruas, de choques, não o simplismo de uma denotação exterior, porém o delineamento do personagem em sua adequação a uma dada ambiência, na qual ele está enraizado, onde sua psicologia se forma, sem o apêlo a qualquer artifício gratuito. A partir daí, ele (o personagem) poderá evoluir ou involuir, libertar-se ou se envolver, de acôrdo com a orientacão do roteiro. Dentro desse esquema, é que Visconti tem sempre se revelado um extraordinário condutor de atôres, cerceados em sua individualidade, em favor de um critério de estilização.
O problema de ritmo, em suas fitas, encaixa-se naquela vertente do fluir contínuo, com as maiores ou menores oscilações, em função das necessidades dramáticas, possuindo com o grande matriz o clássico Sunrise (Aurora), de Murnau. O corte de efeito é, nele, um elemento raro, assim como os movimentos de câmara surgem em consonância às mais diretas solicitações de suas possibilidades, sem haver um parti-pris pelo próprio fascínio do recurso em si. Já os elementos puramente plásticos intensificam-se violentamente, em sua visão ordenada do desenvolvimento das coisas e fatos. A qualidade total, a fidelidade dos décors, a pujança dos enquadramentos. E a própria figura humana se adestra a êsse nível de efeitos puramente visuais, especialmente no modo em que Visconti maneja com as cabeças, forjando as virtualidades das deslocacões circulares. Por isso também, alguns dos seus filmes, como La Terra Trema, são considerados verdadeiros afrescos e quantos atôres encon raram, com ele e em seu processo particular, o rendimento mais eficaz: Clara Calamai (Obsessão), Alida Valli e Farley Granger (Senso), Maria Shell e Marcello Mastroianni (Le Notti Bianche - e é de se notar que Mastroianni estêve, neste filme muito melhor do que em La Dolce Vita ou em II Bell' Antonio, embora fôsse, com os dois últimos, mais bafejado pela fama) e, agora, Alain Delon, Renato Salvatori e Annie Girardot, em Rocco i Sui Fratelli.
Este último filme, em vias de ser lançado pela Condor, constitui-se num daqueles onde as contingências ambientais ainda melhor se definem como foco gerador das modificações dos personagens. Destarte, as cinco partes da película recebem, cada uma, o nome dos cinco irmãos da família que emigrou da Lucânia para Milão, e, lá, se desagregou .
Muitos, a partir da metragem da fita, bem acima da duração comum, aliada à técnica de narrativa empregada pelo diretor - e citando autores, como Dostoievsky, Verga ou Thomas Mann - qualificaram essa realização de Visconti como cinema-romance. Para nós, tal critério não contribui em nada, dentro do escopo de situar a obra ou as condições para a sua melhor apreensão. Já de início, sendo o romance uma das formas de expressão que mais se encontra em cheque, ao exprimir, quase tão intensamente quanto a pintura e a escultura, a crise do artesanato desfechada pela revolução industrial. Ora, o cinema, justamente, é a arte que menos se identifica com a crise, e, ao contrário, na medida em que ela se amplia, mais vai afirmando a sua hegemonia, através da riqueza de materiais que possui, facultando um maior número de elementos e relações, e onde a idéia do artesanato individual cede lugar ao complexo de uma produção em equipe. Quando Lenine denominava o cinema como a arte do século, não devemos ligar essa assertiva profética apenas ao seu entusiasmo pelo ápice artístico da cinematografia soviética naquele período, em seu poder de transmitir, com impacto, os temas da ampla revolução social, mas, sim, ao fato de já então ser a sétima arte aquela materialmente mais rica, aquela que, exatamente, fortalecia-se com a larga reformulação infra-estrutural, quando a evolução da máquina assumia papel saliente. O cinema reorganizou tôda uma nova concepção de realismo, ao conferir-nos aquilo que Merleau-Ponty, com muita acuidade, demonstrou ter sido impossível a qualquer outra espécie de arte proporcionar: o comportamento do indivíduo.
Se formos nos aprofundar na análise da atuacão dos personagens, em têrmos de uma nova estética, temos, então, para minuciá-la, tôda uma teoria do comportamento, em lugar de um ideário estatístico de tipos humanos veiculados pela imaginação dos grandes escritores. Essa confrontação existe, naturalmente, num plano inicial, pois que, primeiro, antes da realização do filme, há um argumento escrito e um consequente roteiro. Mas, na sua consumação final, na tela, quando há um suporte material de visão e audição para os elementos expressivos, é toda uma distância incomensurável do esfôrço de imaginação de quem lê um romance. E êste possui efeitos plasmados em proposição virtual (de elementos) que, na sétima arte, já são supridos em mero estágio material. Exemplo: a descrição minuciosa de uma figura humana que o cinema, num take, já propicia.
Nem, também, estaria Rocco e Seus Irmãos consubstanciado numa tradição de cinema literário, isto é, com o diálogo requintado e as frases de efeito preciosas, a elaborarem conceitos profundos. O que existe é uma técnica do realismo das mais caracterizadamente cinematográficas, da perfeita adequação homem/ ambiente, sem qualquer espasmo alegórico. E, nisso, Visconti é um dos realizadores mais convincentes e raramente deixa escapar alguma dissonância antifuncional no comportamento estabelecido para seus personagens. Alguns, é verdade, trazem de antemão uma determinada configuração alusiva para o tipo que encarnam: como é, de maneira mais acentuada, o próprio personagem-título: Rocco - ou a pureza .
O protagonista não perderá essa qualidade, mas o próprio meio o obrigará a praticar atos em contradição ao seu caráter e, a seguir, uma profissão que é uma espécié de antítese à sua atitude cristã: a de boxador.
Com essas e outras configurações, o metteur-en-scène evidencia, ainda, a sua vinculação (que, enfim, ainda é a de uma grande maioria) ao suporte anedótico, ao pré-estabelecimento entitativo, quer dizer, o sêr que já surge ao espectador, devidamente mentado, definido in abstracto, ao passo que a linha do cinema nôvo de vanguarda, procura a formação desse mesmo ser mediante uma dialética de ação visual, a partir do material do comportamento – do estar. É o caso de A Bout de Souffle, como exemplo mais completo.
Contudo, o método de situar e definir os personagens não foi arbitrário, sob o ponto-de-vista filosófico, nem assim se esgotou no simples objetivo de acionar um entrecho. Há um esquema dialético acambarcandoo conjunto, onde uma posição marxista procura discernir algumas constantes da atitude ou da conjutura alienante. O filho mais velho, Vincenzo, casou-se, tem um filho, e permanece no alheamento pequeno burguês. O segundo, Simone, mal chegado a Milão, foi seduzido e corrompido pelos vícios que apenas um regime capitalista se permite manter. Rocco, o 3º, foi o oposto de Simone, mas a sua atitude de inércia, meramente idealística, baseada em abstrações, foi insuficiente para que ele chegasse a produzir algo de construtivo. Com Ciro, o 4º, Visconti força a sua mensagem e, no desfecho, coloca em sua bôca algumas frases redundantes para todo um contexto que o próprio decorrer da película já assinalara. Ciro é um operário especializado da Alfa Romeo e, pelo menos, tem uma consciência de classe – o que é bastante para, em dado instante, não raciocinar de acôrdo com um ponto-de-vista da sua família. Foi o único a vencer na grande cidade, para onde fugira a família da servidão latifundiária, foi o único a ganhar o seu instrumento de vida.
O fato de os autores do roteiro não terem conferido a êle uma ação mais destacada na fita, permitiu a Jean Bourdin - téléciné nº 97 - efetuar uma curiosa observação: "Seu personagem não tem mais consistência do que o de Vincenzo. Este, porém, deveria ser um rapaz perdido na massa. A inconsistência de Ciro é um fracasso do cenarista." Até que ponto isso foi intencional, não se pode assegurar, mas, em nossa opinião, o desejo em proporcionar uma aferição indireta ao espectador era o alvo do script e exatamente prejudicado pela própria acentuação excessiva dada ao personagem no momento final, quando discursara a Luca, o irmão menor, que seguirá solitário pela rua. Aliás, um finale numa fórmula bem tradicionalmente neo-realista.
Quanto a Nádia, numa interpretação marcante de Annie Girardot, será o ponto de convergência da desagregação dos dois irmãos que têm posição mais saliente dentro da trama. É a môca em perdição, espécie de callgirl sem rumo e em permanente disponibilidade. O regime já a devorara e ela será um dos motivos da irremediável decadência de Simone, enquanto que, a nova esperança que vislumbra na pureza em Rocco, será desfeita pela apatia marginal dêste, incapaz, numa compenetração abstrata, de uma solução ativa, devido aos preconceitos de seu·idealismo.
Com uma unidade quase absoluta no desenvolvimento de um ritmo a se estender em longos compassos, Visconti construiu algumas sequências admiráveis, a partir de seu estilo peculiar: 1) - a crueza chocante da violacão de Nádia, à noite na qual Simone e seus companheiros cercam-na, juntamente com Rocco, no lugar êrmo. Seguro à fôrça, Rocco assiste Simone possui-la. Depois, é o fim da noite, com os socos trocados entre os irmãos; 2) - O assassinato de Nadia, narrado paralelamente com a luta, na qual Rocco se consagra como boxeur. Ela, com os braços abertos em cruz, recebe as sucessivas tacadas de Simone, numa sequência também dotada de rara violência; 3) - A visita de Simone ao apartamento de Morini (Roger
Hanin), onde, inclusive, tôda a caracterização homossexual do encontro está simbolizada pelos quadros renascentistas que a televisão da sala expõe.
Nino Rota, o músico de Fellini, contribui bastante para cunhar diversas passagens com seu acompanhamento bem funcional, sóbrio nos acentos melódicos e com uma espécie de tema para o caso dos personagens principais. Estes surgem magnificamente interpretados, num êxito do controle férreo do diretor e em sua capacidade de extrair um máximo de expressividade do material humano: Alan Delon, Renato Salvatori e Annie Girardot obtem as suas maiores performances na tela, ao passo que Roger Hanin, Katina Paxinou (a mãe), Max Cartier (Ciro) brilham num segundo plano.

Jornal do Brasil
02/09/1961

 
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Revista Leitura 30/11/-1

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Jornal do Brasil 17/02/1957

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Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

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Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
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Jornal do Brasil 07/04/1957

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