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A obra De Sica - Zavattini e Umberto D

Pequena crônica do Néo-Realismo
A depuração completa do que hoje se chama de "neo-realismo", no cinema, se verifica com “Umberto D", essa extraordinária fita da dupla De Sica -Zavattini, o primeiro, o melhor “metteur en scène" atualmente em atividade na Itália, e o segundo, o principal teórico dêsse movimento.
A propósito dessa obra, pode-se tecer algumas considerações a respeito do neo-realismo que, malgrado seus detratores, é a mais coesa escola cinematográfica da atualidade.
A eclosão do movimento surgiu logo após o término da segunda grande guerra e veio acabar com as empoeiradas fórmulas que então vigoravam no cinema peninsular, fórmulas essas que se vasavam em grandiloquentes espetáculos históricos ou, principalmente, numa série de películas que apresentavam um caráter fútil, um teor novelístico, e cujo período em que mais proliferaram foi cognominado de "época do telefone branco”.
Curioso será assinalar que o que plasmou a reação post-guerra não foi, como geralmente ocorre, uma busca de renovação estética ou de novos meios de expressão, quer dizer, a constatação realizada por certo grupo de que os métodos de aplicação formal em determinado metier artístico acham-se exauridos. A reação, no caso, veio de fora para dentro, isto é, a própria situação de miséria e de desagregação social em que se encontrava a Itália, finda a guerra, provocou a incidência de seus reflexos no cinema, arte de enorme divulgação popular. O estado de inquietação reinante não poderia deixar de ecoar entre os homens de cinema que, livres de um govêrno "forte", puderam: assim se entregar ao debate do problema. Os temas mais diretantente ligados aos anseios das camadas sociais mais desfavorecidas passaram a ser expostos e, dêsse modo, o atual cinema italiano visa mais ao coletivo que ao individual, dentro de seu realismo.
Essa crescente ânsia de realidade manifesta-se, no plano artístico, em moldes diferentes do que caracterizou a época áurea do realismo francês, o decênio entre 30 e 40, quando vieram à tona as melhores obras de seus mestres - Duvivier, Renoir e Carné principalmente. Em sua procura de autenticidade, os mestres franceses davam muita atenção aos problemas do indivíduo em confronto com a ordem social e, daí, maior busca de densidade psicológica, motivações filosóficas e configurações mitícas, tudo isso tratado com profundos toques pessoais. E havia ainda a considerar a "recherche esthétique" - a função de cor no sentido ambiente.
O neo-realismo inicialmente acabou com isto. O cinema italiano, dentro da unidade de seus propósitos temáticos, desprezou, a princípio, algumas das mais válidas funções estéticas da sétima arte, aparentemente pela razão de acreditarem seus realizadores serem elas prejudiciais à absorção, no sentido objetivo, do clima de autenticidade, típico desse ciclo de documentários humanos que é o neo-realismo. Motivos econômicos imperiosos também eram a causa disso, impedindo o contrato de artistas profissionais, indispensáveis para certos papéis e, ao mesmo tempo, ocasionando o descuramento da função decor.
A filmagem "in loco" começou a ser empregada em grande parte das realizações, a fim de proporcionar maior cunho de veracidade à ambiência das cenas, e também pela razão da falta de dinheiro que sustava o emprêgo de outros recursos de caráter técnico nas filmagens. O que se chama de estilo, em cinema, perdeu, destarte, muitas de suas características e não é difícil que um conhecedor do assunto fique em dúvida se determinada fita seria, por exemplo, de Castellani, Rosselini ou Luciano Emmer, quando jamais se confundiria entre o realismo poético de Carné, o a ''la noire", tipo Zola, de algumas obras de· Renoir, ou então o sentido épico de certas realizações Duvivier no gênero. Os cineastas italianos inverteram a fórmula: não é o indivíduo afrontado pelo meio, mas, ao contrário, são as reinvicações das comunidades, exploradas pelos grupos econômicos, que geralmente êle expõe. Numa época, que se pode configurar tipicamente na de antítese de Hegel, de superconcentração da propriedade (os grandes capitais) e geradora, por conseguinte, de maior índice de miséria e desajustamentos, o cinema italiano se identifica com essas reivindicações, torna-se participante.

II

Após o primeiro sucesso com "Sciucia”, De Sica e Zavattini · iniciaram um dos mais importantes ciclos na história do cinema . ·
"Ladrões de Bicicletas", que foi apresentado a seguir, tornou-se um dos clássicos do cinema moderno. O impacto emocional que consegue causar, mercê de sua narrativa singela, porém de cunho aItamente humano, faz-nos realmente participar do drama dos assediados pela pobreza; no caso, um homem que, apenas com a perda de sua bicicleta, vê-se totalmente impedido de prover os meios de subsistência para si e para sua família. Foi o ponto mais alto a que chegou o neo-realismo e, pode-se mesmo lembrar, no referendum promovido por ''Cahiers du Cinema”, classificou-se como o terceiro filme entre os que foram exibidos nos cinquenta anos da sétima arte, até aquela data.
Com os louros de terem realizado a obra-prima do neo-realismo, por qual caminho enveredariam, já que aquêle trilhado se apresentava completamente desbravado? Vale, no momento, relembrar trechos da palestra mantida entre Zavattini e Claude Roy: "L'impasse où risque de nos conduire ce qu'on a appelé le neo-realisme c'est une certaine complaisance. On dittes choses comme elles sont. II faudrait dépasser maintenant ce stade, qui a été nécessaire à l'Italie de la simple constatation. Incidevare sempre piu nei raporti concreti e sociali. II ne faut pas nous répéter. Après "Le Voleur de Bicyclette", De Sica et moi nous sentions besoin d'aller plus loin, de faire autre chose, de dire davantage" . Essas foram as palavras do famoso cenarista. O perigo dêsse estado de simples constatação ao qual estavam se limitando os homens de cinema teria que ser evitado. Precisava-se dizer mais e por outros métodos. Foi quando De Sica e Zavattini resolveram se utilizar do livro dêste último, “Toto II Buono", de cuja história, mediante algumas modificações, foi construído o cenário de ''Milagre em Milão”.
O método agora era o irrealismo, a alegoria. Disse Claude Roy: - "Toute oeuvre d'art valable requiert, pour etre vraiment pénétrée, un effort de la partde celui qui en veut jouir. Mais dans l'oeuvre allégorique, cet effort est posé comme condition première. Au spectateur du "Voleur de Bicyclettes” on demandait d'entrer dans la rue, au restaurant, au foyer. Au spectateur de "Miracle à Milan", on demande d'entrer dans le jeu”.
“Milagre em Milão", uma fantasia de caráter alegórico, foi concebida com extremo cuidado, apresentando um decor, além de perfeitamente funcional, revolucionário dentro da esfera do neo-realismo. Admirável também a fotografia de Aldo Grazziati, bem como a música de Alessandro Cigognini. É a obra que mais revela a influência de Chaplin sobre De Sica, principalmente em sua primeira parte, que, aliás, é antológica, com os grandes efeitos da fotografia de Aldo. As melhores sequências da carreira de De Sica surgem, isoladamente, em "Milagre em Milão”, como a inicial, Chaplin puro, o nascimento do menino entre as couves até o dia em que, saindo do orfanato, dava bom dia a todo mundo. A cena do entêrro é admirável sob todos os pontos de vista e "a luta pela nesga de sol" é uma das melhores trouvailles da história do cinema.
Após a metade, entretanto, a fita começa a enveredalr num excesso de fantasia, desvirtuando sensivelmente o ritmo, sem mais conexão com o sentido alegórico que vinha sendo imprimido e termina com todos os pobres a voar em cabos de vassoura, a caminho da terra em que "bom dia quer dizer, na verdade, bom dia". A impressão que fica é de que os realizadores caíram num estéril escapismo receosos de enfrentar o problema que delinearam. Não se deve acreditar, até certo ponto, nesse aparente escapismo - o que transparece é um inexorável ceticismo. A mensagem é a seguinte: o dinheiro e, consequentemente, a propriedade são portadores do mal; enquanto os homens se distinguirem pelo que possuem, sempre haverá ambição, nunca serão irmãos. Não havendo solução dentro dêsse esquema, a única coisa que se pode fazer é brincar, sonhar - ou melhor, façamos de conta, usemos a fantasia como lenitivo.
“Miracolo a Milano", apesar de sua desigualdade, não deixa de ser um ótimo filme. É outro clássico do neo-realismo, principalmente em virtude do alto teor inventivo que caracteriza sua realização.

III

Zavattini confiou, certa vez, seu sonho estético a André Bazin: "Desejava realizar um filme sôbre noventa minutos da vida de um homem, durante os quais nada acontece". Era a volta ao realismo direto, mercê de ousada experiência - a elisão da contextura dramática. É fato notório que grande parte dos teóricos é de opinião que essa contextura dramática afigura-se essencial para que uma obra de arte se realize; seria o campo de aplicação da forma. Cremos ser "Umberto D" uma réplica a essa tese.
Que· representa para o cinema hodierno a experiência configurada nessa realização? Concluímos, inicialmente, que constitui a obra mais depurada entre as que foram vasadas nos moldes neo-realistas. Os excessos que as primeiras fitas, como ''Roma, Cidade Aberta" ou "O Bandido", apresentavam, em sua tentativa de chocar o espectador, fazendo com que êste, quase obrigatoriamente, participasse do drama em foco, tinham forçosamente que ser de belados ou tôda eclosão neorealista seria posta fora. As frequentes e absurdas despreocupações técnico-estilísticas ameaçavam transformar as obras em simples mensagens, repetidas incessantemente, sem que se cuidasse do "modo" de apresentá-las. Justamente é o “modo" de se transmitir a mensagem que lhe confere o devido realce e consequente penetração, isto é, uma obra de arte se realiza pela solução formal encontrada para expor a sua mensagem e não de acôrdo com o caráter de maior ou menor transcendentalidade da mesma.
Deve-se ressaltar que essa intenção de "chocar” o espectador, tornando-o, participante, não possui, na obra de De Sica-Zavattini, o sentido imediatista de propugnar por reformas sociais (o mais categorizado representante dessa corrente, no cinema italiano, é Giuseppe de Sanctis). Roger Manvell é um dos primeiros a observar isto, quando, a propósito de “Ladrões de bicicletas" e "Umberto D", diz: ''They are profoundly moving. They fill us with a desire to help make things right for these people, to help them personally in some way. Yet they are not propaganda films, agitating for social reforms. They are, rather, films of good-will in the fundamental Christian senee. They use the intimacy of motion picture photography, the realism of the camera's unflinching observation of place and people to purge us of human apathy about the state of our fellow men and women. l do not think films of greater significance than these have been made''.
Em “Umberto D” pode-se apreciar a harmonia perfeita que existe entre o trabalho do diretor e o do cenarista, êste apresentando um "script" preciso, filtrado de todos os excessos que convidam os temas atuais do cinema italiano e o primeiro com uma marcação seguríssima nos atores e domínio completo na ritmica da línguagem cinematográfica. À história é extremamente simples: a odisséia de um velho funcionário aposentado, em luta pela sua subsistência. Nunca, talvez, o germe do melodrama estêve tão afastado de uma história, como desta (disse André Bazin: "L'Assymptose du neo-realisme"). Se bem que a linha de nossa sensibilidade não oscile tanto quanto em "Ladrão de bicicletas”, não se pode deixar de notar o alto grau de conteúdo humano que "Umberto D" apresenta.
Novamente contaram os responsáveis com a atuação de Cigogonini, no acompanhamento musical, e Aldo Grazziati na fotografia. Desta vez Aldo não tem a mesma oportunidade que em "Milagre em Milão", mas, de qualquer forma muito contribui, dando uma unidade angular nas tomadas para concordar com o caráter linear do desenvolvimento das imagens. A música de Cigogonini é singela, no sublinhamento da triste monotonia da vida de um velho.
O velho e seu cachorro, Flaik. Este bicho é único ser que ainda toca a sensibilidade do protagonista, que, acuado como um animal na luta pela sobrevivência, já tinha se desumanizado em parte. Assim, êle se identifica com Flaik e, com êste reparte - todo o resto de confôrto que ainda consegue obter. Somente na cena final, quando Umberto, já
completamente desesperado e levando o animal no colo para o mesmo destino, tenta se suicidar, postando-se na linha do trem, é que o cão se lhe escapa. Se existia identificação entre os dois na luta pela vida, Flaik, entretanto, não conhecia o problema de ser "civilizado".
A fita termina com o velho tentando reconquistar a confiança perdida e, depois de consegui-la, seguem os dois a brincar pelo caminho. Muitos viram nisso um repúdio ao pessimismo mas, a verdade é que, "a fita apenas recomeça", como disse Robert Pilati.
Numa das poucas vezes em que uma das partes acessórias da temática do filme assume o primeiro plano, De Sica compõe a pequena sinfonia humana - o despertar da jovem empregada da pensão, grávida e triste, no qual a câmera acompanha, em tôdas as minúcias, as suas atividades na cozinha, até encerrar a tocante sequência com um memorável close-up dela com lágrimas nos olhos. O que há de triste e singelo nessa sequência está admiravelmente dosado, sublinhado também de modo inefável pelo acompanhamento musical de Cigogmi, tornando-a antológica.
Em “Umberto D" aparecem também os toques chaplinescos; o mais típico é o da cena em que o velho, já vendo esgotados todos os recursos de que dispunha para conseguir dinheiro, resolve, numa rua, pedir esmola aos transeuntes, mas, quando um deles se aproxima com disposição de atender ao seu apelo, êle, envergonhado, vira para cima o dorso da mão, como se estivesse a verificar se chuviscava.
Para o papel principal, foram os realizadores buscar um professor de universidade, Carlo Battisti, o qual se desincumbe com muita naturalidade de sua parte. As mais sutis nuanças de interpretação, correspondeu como um veterano. É sempre Umberto, um homem velho, apenas, ao qual o ritmo trepidante da vida deixou à margem. Seus olhos não brilham, mas também não se apagam. Seus anseios são os mais imediatos e simples possíveis - quer viver. Sua personalidade em momento algum assume qualquer entidade mitica; não tem destino e donde veio não interessa.
"Umberto D" sublinha coro muito mais eficiência, a sua mensagem, que uma série de películas mais ambiciosas e levadas a efeito com o mesmo objetivo. A sua tão decantada ausência de contextura dramática nada mais é que um humanismo, o qual aflora tão intensamente das imagens, que prescinde do jôgo de paixões como força motora de intensidade emocional. Além de ser uma obra-prima, constitui a segunda fita, em importância, do nóvel cinema italiano, logo abaixo de "Ladrões de Bicicletas", e acima de "Obsessão", "Roma às 11 horas", "Milagre em Milão" e "O Caminho da Esperança".

Jornal do Brasil
30/09/1958

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

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Jornal do Brasil 17/02/1957

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Jornal do Brasil 24/03/1957

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Jornal do Brasil 24/03/1957

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