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Huston - Melville - Moby Dick

Na obra de John Huston, "Moby Dick" corresponde a uma reascensão fulminante, um novo e grande salto qualitativo, embora posteriormente "O Céu é Testemunha" viesse a desmentir todos os prognósticos de outro período ininterrupto de pleno fastígio em sua carreira. De qualquer forma, a sua adaptação para o écran, de parceria com o escritor Ray Bradbury, da novela de Herman Melville redunda numa realização maiúscula que paira lado a lado com os seus maiores filmes: "A Glória de Um Covarde" (The Red Badge of Courage), "O Segrêdo das Jóias" (The Asphalt Jungle) e "O Tesouro de Sierra Madre" (The Treasure of Sierra Madre). É também, por conseguinte, e como o foram "La Strada", de Fellini, ou "Noites de Circo", de Bergman, uma das poucas e autênticas obras-primas do cinema aqui estreadas nos três últimos anos.

TENTATIVA

"Moby Dick" foi entretanto alvo de sérias restrições de boa parte da crítica estrangeira, principalmente da francesa, que de certo modo escudava suas razões no fato de ser a película uma tentativa frustrada de trazer Melville para a tela. Talvez mesmo não seriam poucos os que a analisassem com o romance ao lado em busca das "infidelidades ao original". Nesse ponto, julgamos permanecer tal atitude crítica, prêsa a um complexo de conteúdo, numa perspectiva desfocada para com o real problema de encarar a obra de arte. Existe o "Moby Dick", de Melville, um clássico da literatura. Existe o de Huston (e para nós um clássico) no cinema. Não importa, a princípio, notar se o metteur-en-scene foi fiel ao livro, se o compreendeu bem, ou mal. Importa, sim, se levou a efeito um filme de qualidade. E isso, assim como ocorreu no romance homônimo, somente poder-se-á constatar através do problema da forma. A conclusão de que houve traição ou deturpação da mensagem de qualquer romance ou peça literária, segundo a interpretação de cada um, jamais constituirá prova suficiente de que alguém realizou um mau celuloide. E, ao contrário, "Moby Dick" tinha no próprio Huston uma das raras garantias de sucesso artístico em sua transposição para a tela. Determinados elementos da saga hustoniana se ajustam plenamente ao sentido temático do original. A ambição condicionando um determinismo fixo que marca seus personagens sempre soterrados sob o pêso do fracasso em alcançar o grande objetivo. O vigor das imagens calcando a rudeza e o desassombro dos homens à caça do alvo que se consubstancia no último lance com a sorte e onde o acaso geralmente intervém de maneira negativa. Muito viável, pois, o fato de que muitos, conhecendo Melville, não tenham na verdade entendido Huston ao acusarem-no de não ter compreendido o escritor.

REALIZAÇAO PERFEITA

Dentro portanto de um esquema formal, "Moby Dick" é uma fita que se nos afigura perfeita em seu complexo roteiro/realização. O "script" da dupla Hustou-Bradbury filtrou e condensou com um máximo calculável de precisão o essencial do tema de Melville em função de uma determinada série de elementos visceralmente cinematográficos a preajustar uma cadeia de efeitos nesta esfera. Criouse um ritmo denso, exato, que segue até o desfecho num crescendo sem oferecer a menor dissonância.
Visualmente, um dos espetáculos mais extraordinários já presenciados. Oswald Morris, que tem sido sempre o eficiente câmera-man de Huston em sua última fase, obtém com seu trabalho um resultado acima do comum, mediante um novo processo tonal elaborado por êle e pelo diretor - a justaposição da fotografia em côres com ó preto e branco. Justamente, êsse novo cunho, caracterizando as sequências, concorda por inteiro com o teor de ambiência da própria história. Desde o início, quando Ismael desce pelo riacho, até o instante final em que é o único sobrevivente da fúria da baleia, salvo paradoxalmente pelo caixão de entêrro de Queequeg, a feição plástica do filme é um fator constante de valia reforçado pelo esmero empreendido em seu tratamento.

CENAS ANTOLÓGICAS

Destarte, auxiliado por Morris e pelo excelente acompanhamento musical de Phillip Stainton, são diversas as passagens de caráter nítidamente antológico construídas por Hustou. O encontro de Ismael na taberna da hospedaria com outros tripulantes do Pequod. O clima úmido e sombrio espraiando-se por um décor bizarro, enquanto todos cantam após a apresentação do neófito. Durante êste trecho, surge ao longe, na rua, pela primeira vez, o Capitão Ahab significativamente iluminado por um raio.
A seguir, na cena de entrada na capela, a câmera em admirável travelling lento vai descortinando a cabeça dos fiéis e, ao fundo, as multiplas inscrições na parede dos mortos em luta no mar, ao mesmo tempo em que um hino é entoado em côro com bastante expressividade. Entra então Father Mapple (Orson Welles, em boa forma) para o famoso sermão, um dos períodos-chave para a estruturação simbológica do entrecho. Enquanto o pastor recapitula o conhecido episódio de Jonas e a baleia, os realizadores, através do enquadramento e da montagem, extraem preciosos efeitos do desenrolar de toda a sequência - ora as angulações das tomadas do orador sôbre o púlpito feito proa de barco, ora as manobras com o close-up, tanto do protagonista da cena, como dos vários tipos marcantes colhidos na audiência. Logo posteriormente, o esmiuçar sobre os diversos tipos de feições humanas se acentua na hora da partida do navio - um silêncio em contraponto com o movimento ordenado dos tripulantes no embarque e preparativos para a largada do cáis, onde há a destacar um curioso perfil feminino de uma religiosa que fornece bíblias aos homens que, um a um, ingressam na nave e que se espanta com o indígena e o encontro de Ismael e Queequeg com o mendigo-profeta Elias, onde precisão e apuro visual atingem o ápice. Tôda a passagem do embarque e saída, conduzida com equilíbrio absoluto pela equipe do cineasta de "Moulin Rouge", delineia um vivo exemplo do artesanato com a linguagem cinematográfica elevado à máxima potência no sentido de uma funcionabilidade extremamente rigorosa na estruturação de um punhado de soluções inventivas ao passo que eficazes. É o que acontece, daí em diante em especial, quando Huston, a qualquer instante em que a câmera asteja voltada para o céu, aplica a sua capacidade imaginativa a fim de jogar com os velames, mastros, cordas etc., na elaboração de uma virtualidade de planos sempre rica em achados visuais.

RITMO DOSADO

A primeira caçada de baleia se configura noutra cena antológica; isoladamente quase um documentário magistral. O diretor dosa o ritmo com invejável mestria - um encadeamento de planos sucessivos de ondas, canoas, pescadores e baleia. E na sequência quase imediata em que o Capitão Ahab incita os seus comandados ao juramento de vingança e busca eterna da baleia branca, a tensão do ritmo é dilatada mediante um engenhoso processo de conflito de tempo visual com tempo sonoro. Se, em medium-shot ou no grande primeiro plano, em movimento de travelling praticamente circular, o protagonista fala pausadamente com os marujos em tom pesado e soturno, ao mesmo tempo em que lhes entrega o rum, a música, no entanto, abandona completamente o sublinhamento descritivo e trilha uma linha rápida de compasso vivaz e ríspido, apenas encontrando paralelo num dado momento em que os homens se agarram à jarra da bebida com faina. O efeito obtido é valioso, pois o cineasta cria uma sensação não figurativa de um estado de espírito que as imagens, de acôrdo com a sua utilização para a dita sequência concebida, eram, por si só, insuficientes para formular.

TRECHOS IMPORTANTES

Inúmeros, os demais trechos que denotam pequenos ou grandes achados no trato com a linguagem cinematográfica até o monumental climax com a perseguição a Moby Dick. Podemos citar entre muitos, a dança do negrinho com o pandeiro em tôrno de Queequeg que, calado, espera a morte, o minuto imponente em que Ahab avança durante a tempestade (outra sequência muito bem montada), frente à tripulação, e domina o fogo do santelmo ou o ruído das passadas do capitão em cima do leito de Ismael.
Entre os intérpretes, Richard Basehart confirma outra vez ser um dos melhores atôres egressos da penúltima fornada de Hollywood, compondo de modo firme e autêntico o personagem de Ismael. Leo Genn empresta a sua classe às dúvidas de Starbeuck. Friedich Lederer faz um Queequeg bem caracterizado e Orson Welles, em breve aparição, dá, como de hábito, uma nota alta.

UM PONTO FRACO

Deixamos para o fim a atuação de Gregory Peck, como o Capitão Ahab.
É sabido que Huston tinha antigamente a idéia de conferir êste papel ao seu falecido pai, o extraordinário ator Walter Huston, que seria indubitavelmente a melhor escolha, e também a Humphrey Bogart, que tantas vêzes com êle colaborou. Finalmente entregou-o a Gregory Peck. A sua interpretação é considerada unanimemente como o ponto mais fraco da película. Na realidade, apesar dos cuidados do diretor e provavelmente do seu próprio esforço pessoal, o astro não corresponde intotum às árduas solicitações do personagem. Todavia, não cremos que comprometa irremediavelmente o êxito da produção; em algumas cenas chega a ser convincente mesmo, dentro de suas naturais limitações. O role era difícil de fato. Em Ahab concentram-se múltiplas atitudes e/ou reações diretamente vinculadas à força motora do núcleo simbológico plurivalente ao argumento. Se a baleia é Deus, Ahab pode ser o demônio, o homônimo rei mau, mas também traduz o homem em toda a sua obstinação de vencer além do mito. Se Deus é o bem, o homem só pode ser o mal ao tentar igualá-lo. O mal existe em função da existência do bem. Ahab não acompanha a lição de Jonas, não retrocede, e sucumbe tentando derrubar o mito. É assim: o indivíduo é falível. Deus não existe e sim o faz de conta, o incessante processo mitificante do homem que quando se define desprende como entidade além do próprio controle de quem a forjou. Starburck reconhece tarde demais ao impelir o restante da tripulação contra Moby Dick. Em paralelo com as permanentes transplantações dos elementos simbólicos do plano bíblico para o mitológico, essas últimas considerações podem paira: como uma interrogação. E o assunto teria se prestado para mais uma aplicação da saliente veia irânica de Huston. Se não o foi, é uma irrefutável comprovação de sua tentativa em ser fiel ao espírito de Herman Melville.

Jornal das Letras
01/05/1958

 
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