jlg
cinema

  rj  
Murnau e a arquitetura do filme "Aurora"

A apresentação de "Aurora" (Sunrise) no 13º programa do ciclo retrospectivo do Festival do Cinema Americano, organizado pela cinemateca do Museu de Arte Moderna, veio possibilitar o conhecimento de um dos filmes mais extraordinários já levados a efeito em tôda a história da sétima-arte, hoje em dia, um autêntico clássico.
Foi a primeira película de F. W. Murnau a ser realizada nos Estados Unidos, mercê de um contrato com a Fox, e após a sua cintilante carreira como uma das figuras salientes do expressionismo alemão, tendo em seu acêrvo obras de elevada envergadura como "Nosferatu", "A última Gargalhada" ou "Fausto".
Recebendo carta branca para trabalhar empregando os meios que julgasse convenientes, apoiado num roteiro do não menos importante cenarista Carl Mayer e assessorado pela eficiência do desenhista de produção Rochus GIiese e dos camera-men Charles Rocher e Karl Straus, pôde êle criar essa obra-prima que é "Sunrise”, onde, shot por shot, é facultado ao examinador atento perceber os processos de rigorosa construção a que obedeceu.
Por outro lado, a inestimável importância da fita é avaliável pela onda de debates e controvérsias que, na época de seu lançamento (1927 - fim do cinema mudo, início dos talkies) e mesmo atualmente, tem provocado. Um Paul Botha, por exemplo, em "The Film Till Now", afirmou ser uma verdadeira obra-prima do bluff, lastimando a incursão de Murnau a Hollywood, embora nada oferecesse de positivo a fim de tentar justificar as razões de sua assertiva dentro de uma dialética baseada nos processos formativos pertinentes à esfera de ação da linguagem cinematográfica. Êste desnível de perspectiva é encontrado através da opinião de muitos outros portadores de um abecedário devidamente convencionalizado para medir o valor de uma realização conforme a maior ou menor saturação de uma rígida bateria de regras de consumo particular. Sadoul, citando outro exemplo, malgrado reconheça o indiscutível mérito da película, acusa-a de um esteticismo frio, no parecer dêle, desnecessário, sem dar-se conta, no entanto, que é justamente a precisa convergência, para a consumação de um todo, dêsses artifícios próprios à arte cinematográfica a causa única do bom ou mau êxito de um celuloide. São os elementos qualificados na integração de uma determinada estrutura e cuja manipulação no jôgo de formas condiciona os efeitos a serem despertados. Aí está o verdadeiro conteúdo de uma obra de arte e não o mero desenvolvimento descritivo de um dado entrêcho. Um simples tema, deduzível dêsse entrêcho, formula-se apenas como um dos elementos ativantes do totum e é o caráter funcional de cada um dos elementos discerníveis que possui capacidade de delinear uma fixação de valor dentro do julgamento estético. Portanto, no terreno dos critérios de uma análise crítica de feição científica, não cabe a arraigada distinção de forma versus conteúdo. Um grande tema, concebido a princípio, jamais decidirá a estatura de uma obra. Afinal, é sabido que uma fita versando sôbre idílio de borboletas pode com muita facilidade vir a ter maior transcendência do que outra a respeito dos perigos da bomba H ou sôbre a Paixão de Cristo, E "Aurora", em especial, com uma história singela, já narrada no écran com tôdas as variantes possíveis, se configura numa evidente amostra do fato.

A ELABORAÇAO DO RITMO

Possivelmente, o único ponto discutível e passível de ser caracterizado como falha na constatação de um desvio do ritmo psicológico – uma dissonância heróica no sentido de forjar um terceiro movimento – está no desenrolar do plot. Este ocorre "em qualquer lugar do mundo" e narra a serena existência de um casal do campo que vem a ser perturbada pela chegada de uma mulher da cidade que seduz o homem, incutindo nêle a necessidade de matar a espôsa. Tudo preparado para acontecer durante um passeio de bote, êle perde a coragem e se arrepende no instante decisivo enquanto a môça, espavorida, foge rumo à cidade com o marido no encalço, procurando readquirir a confiança perdida, o que consegue após uma série de breves episódios pelas ruas, culminando com a cena de um casamento ao qual assistiram juntos. A seguir, é a feérie e o turbilhão da cidade que os envolve na comemoração de uma segunda lua de mel até o retôrno para casa novamente de braço. Sobrevém, contudo, uma tempestade que os engolfa. Salvo, o marido envida desesperadamente, com o auxílio da população, encontrar a espôsa que é dada por morta. Em meio ao seu transe, reaparece a mulher da cidade, julgando haver êle cumprido o pacto, e, quando está prestes a ser estrangulada pelo amante, os gritos da ama avisam-no que a espôsa fôra por fim encontrada com vida. Volta a tranquila felicidade enquanto a mulher da cidade parte para sempre.
Murnau idealizou um ritmo decompôsto em duas fases principais: a 1ª, que vai até o momento em que a mulher
percebe as intenções criminosas do marido e foge, obedece a um crescendo constante, compassado numa sucessão rigorosamente harmônica das sequências, através de um esquema matematicamente calculado para a delimitação de tempo - tudo subordinado a uma medida exata do período
de saturação de cada take em função do clima visual que qualifica o tonus dramático; a 2ª fase compreende tôda a efusão alegórica transcorrida na cidade até o momento da volta. Aqui o grande metteur en scene entra num diapasão de vivacidade da linha rítmica com invejável mestria, passando de um estágio para outro com naturalidade e a mais rara habilidade. Rege o pulsar das sequências imprimindo-lhes um colorido vibrátil, a pender ora para o burlesco, ora para o lírico, numa cadeia de cenas pontilhada por diversos efeitos cômicos. A cidade aparece aos dois como um imenso grandguignol, curioso e fantástico. Nessa segunda fase, o ritmo atinge um ponto máximo de vivacidade para depois tornar a decrescer em sentido oposto até a passagem em que o par retorna de barco pela noite a dentro. O círculo poderia se fechar naturalmente ao fim desse trêcho, porém, o realizador insere uma nova variação com o acidente da tempestade, formulando uma terceira parte que engloba, em tempo menor, as alternantes já contida nas duas primeiras, agora conferindo um caráter patético ao impacto da eclosão dramática. A eficácia da 3ª fase, a sua permanência no script com vistas a reforçar a contextura dos recursos destinados ao sublinhamento emotivo da trama, é o referido aspecto discutível de "Sunrise". O teor psicológico do filme, plasmado mediante a progressão das imagens, parecia solicitar uma subida e descida em linha reta, dispensando as maiores oscilações que poderiam, inclusive. conduzir a um fluxo melodramático. Murnau soube todavia contornar a situação, conferindo um elevado grau de dignidade às derradeiras cenas, algumas dotadas de extraordinária riqueza visual como a do lago iluminado pelas lanternas ou a do despertar súbito da mulher da cidade para posteriormente espiar, do alto, a chegada do homem salvo mas desolado. Os recursos de iluminação, no domínio dos quais o cineasta germânico foi um incontestável mestre, atingem resultados marcantes.

TRATAMENTO VISUAL

Poucas vêzes é permissível denotar tanto rigor e consciência na construção de uma obra cinematografica como em "Aurora". Dentro de tal escala, Murnau lembra Eisenstein, embora os processos formais utilizados pelos dois grandes homens de cinema não sejam comumente afins. Tôdas as passagens desenroladas no campo são de uma inigualável plasticidade, revelando um esmêro na preparação do set de filmagem que vai até o menor detalhe. Não existe nada em cena que não concorra de modo funcional para a cristalização de uma ambiência. As sequências decorridas em interiores, mediante a solidez dos elementos de composição e o tratamento da luz, filtrada pelos objetos ou distribuída pelo retângulo em perfeita consonância de efeitos, indica uma feliz absorção de quase tôda uma tradição da pintura flamenga. O nome de Vermeer mesmo acode à memória ao nos defrontarmos com uma, concepção estilística análoga à sua no uso do iluminação, no lidar com os móveis; objetos e alguns rostos femininos dosados com uma sombria passividade. O pêso dêsses elementos, seu caráter a maciço, proporciona de maneira direta a sensação de fixa solidez a ser apreendida tomada por tomada. A impressão constante é a de uma ansia de ordem e firmeza e a enfase calcada em tôda parte da tela é uma característica típica em Vermeer, como o nota Andrew Forge, ao chamar ainda a atenção para a sua perene vontade em reconstituir a ordem do mundo exterior.
Também admiráveis são os trechos do encontro dos amantes, onde a fotografia continua a explorar novas fontes de plasticidade: a mata no esfumaçado, a mulher de negro e a ínterseção de planos entre as cenas de paixão violenta e as de ternura entre a criança e a mãe em casa.
A primeira viagem pelo lago é antológica pela forma com que o diretor soluciona um problema através dos métodos mais simples, na hora em que a superfície tranquila das águas, um bote e o casal são utilizados com precisão num magnífico fluir da sensibilidade expressiva do realizador para propiciar medidas exatas a um contexto abstraído de uma situação. Basta uma tomada bem enquadrada e no momento preciso - a extremidade do barco com Janet Leigh sentada e, ao fundo, o lago - para a idéia de solidão.
Durante as sequências na cidade, onde um clima feérico é forjado com uma série de pormenores inventivos, temos também excelentes achados cômicos, como o da visita do casal ao engraçado fotógrafo ou o trecho da dança dos camponeses quando um cavalheiro endireita a todo instante as alças do vestido de uma dama que teimam em cair. A notar, outrossim, o beijo do casal em plena rua, parando o trânsito, e consumando à base de um bor jôgo de cortes.
Nessa 2ª fase, com a famosa cidade fictícia, inteiramente construída nos estúdios, como background, Murnau tem oportunidade de se reaproximar com inteiro êxito de algumas constantes do expressionismo, especialmente a partir da extraordinária passagem de apresentação do parque de diversões. São lâmpadas, vidros, espelhos, o esfumaçado, o claro-escuro, numa apoteose visual da fascinação que domina os protagonistas.

MÚSICA E INTERPRETAÇÃO

O acompanhamento musical do Dr. Hugo Riwsenfeld tem momentos de grande acêrto, principalmente na parte do encontro noturno e na do passeio pelo lago onde as tonalidades sonoras se entrosam magníficamente com o ritmo visual, valorizando por conseguinte as sequências. A repentina mudança de fio melódico na entrada do salão de barbeiros, embora demasiado chaplinesca, é feita com felicidade e o uso das trompas para os apêlos no final representam uma solução condicionada a uma concepção excessivamente figurativa para o uso da faixa sonora, malgrado não deturpe o sentido das imagens. De qualquer forma, as redundâncias aparentemente desnecessárias encontráveis nesse setor facultam o advento das pausas com o silêncio usado sempre magistralmente por Murnau: a
hora do lago em que o marido recolhe os remos a fim de executar o seu plano assassino.
Janet Gaynor foi procurada pelo diretor para que sua figura pudesse corresponder a todos os efeitos plásticos que êle almejava extrair. Murnau talhou-a em bondade e ternura como poucas vêzes vemos numa figura feminina no écran. E extraiu-lhe também alguns close-ups inesquecíveis. Muito melhor do que em "Nasce uma Estrêla", melhor ainda do que em "Sétimo Céu", talvez seja o de "Sunrise", modelada por Murnau, e maior desempenho de sua carreira George O'Brien, em certas ocasiões bem exuberante em suas reações, é, entretanto, uma impressionante máscara noutros instantes. Margaret Livingstone, compondo um tipo devidamente estilizado às necessidades do entrêcho, plenamente convincente, inclusive na difícil sequência da dança marcada a largas gesticulações de um devasso-demoníaco. Quanto aos coadjuvantes, são todos ótimos tipos característicos como a ama, o fotógrafo, o barbeiro ou o cínico cavalheiro.
Diferente das idéias de montagem como eram preconizadas por Eisenstein, a chave estrutural posta em ação por Murnau, num "Sunrise" pelo menos, ccrresponde à concepção de um fluir constante, "uma cena tirada da outra", como o disse Otávio de Faria no seu valioso estudo "O Cenário e o futuro do cinema", quando encaixa o trecho do encontro entre o marido e a mulher da cidade dentro de sua teoria da continuidade absoluta, a qual julgava na época (1928) como a melhor solução para os problemas do cenário.
Para o cineasta alemão, valorizar ao máximo o poderio de intensidade visual de cada shot era uma obsessão onde o cuidado no esmiuçar de cada detalhe estava preso a um interêsse de conduzir o espectador sempre envolvido numa dada atmosfera proporcionada pela sequência em foco. Em "Aurora", os processos de fusão têm uma função importante, embora o diretor também não decline das soluções fornecida através do corte. Existe mesmo um certo grau de ecletismo na recorrência a métodos e recursos, porém, através de todos dos quais se serviu, houve-se como um mestre incomparável, ccmpondo uma obra da maior significação. E sua fita é, sem dúvida uma das mais gratas revelações entre as que nos são propiciadas pelo Festival do MAM.

Jornal das Letras
01/09/1958

 
Uma Odisséia de Kubrick
Revista Leitura 30/11/-1

As férias de M. Hulot
Jornal do Brasil 17/02/1957

Irgmar Bergman II
Jornal do Brasil 24/02/1957

Ingmar Bergman
Jornal do Brasil 03/03/1957

O tempo e o espaço do cinema
Jornal do Brasil 03/03/1957

Ingmar Bergman - IV
Jornal do Brasil 17/03/1957

Robson-Hitchcock
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - V
Jornal do Brasil 24/03/1957

Ingmar Bergman - VI (conclusão)
Jornal do Brasil 31/03/1957

Cinema japonês - Os sete samurais
Jornal do Brasil 07/04/1957

Julien Duvivier
Jornal do Brasil 21/04/1957

Rua da esperança
Jornal do Brasil 05/05/1957

A trajetória de Aldrich
Jornal do Brasil 12/05/1957

Um ianque na Escócia / Rasputin / Trapézio / Alessandro Blasetti
Jornal do Brasil 16/06/1957

Ingmar Berman na comédia
Jornal do Brasil 30/06/1957

562 registros
 
|< <<   1  2  3   >> >|