Enquanto o conceito de cultura não vier a ser entendido estruturalmente, parece que muitos desenganos e descaminhos ainda orientarão uma política. Agora mesmo, por exemplo, anunciou-se oficialmente a existência de certo Plano Nacional de Cultura, a cargo do Conselho Federal de Cultura
O entendimento quase inteiramente vasado no abecedário, onde essências e aparências se misturam. Ou melhor, exemplo de cultura seria o homem de salão, a fazer parábolas e ironias, ou a citar autores a cada minuto.
Porém, uma definição de cultura nada tem a ver, diretamente, com isso. O que é cultura? É algo de dinâmico: não é o empilhar de conhecimentos, é, sim, a FORMA pela qual o ser humano adquire conhecimentos. E tal forma não é apenas livresca, verbal, professoral. Um analfabeto também adquire cultura, embora fique mutilado, marginalizado em todas as civilizações sob o predomínio da escrita. O esforço de debelar o analfabetismo é o esforço de integração num sistema.
Se um analfabeto, por exemplo, assiste ao filme em cartaz, Eram Os Deuses Astronautas? ouve e vê (e compreende) a exposição documental a respeito do choque cultural em outras épocas - o mesmo fenômeno cuja divulgação, hoje em_dia, é vedada ou distorcida graças a uma espécie de acordo entre os orgãos de segurança das grandes potências. Está informado. Estará, sim, provavelmente, na etapa natural seguinte, desprovido de situar essa informação dentro de um repertório referencial mais amplo.
Então, voltando à vaca fria, é exatamente o repertório referencial que põe em primeiro plano o problema da liberdade. Quanto menor é a liberdade, menor será a amplitude de dinamização do conhecimento. A sua supressão constitui um caminho (melhor seria dizer descaminho...) análogo ao que faria o alfabetizado rumo ao analfabetismo.
Ora, também um plano - não para punir os violadores da liberdade - mas concebido para impingir determinada forma de cultura, não será mais do que novo arreganho do tigre mencionado pelo Sr. Castelo Branco, em seu artigo de domingo passado, no Jornal do Brasil. Será a cultura com as aspas a caracterizar a formação dos que, eventualmente, ocupam o poder. Uma delas, lamentalvelmente, é o nacionalismo. Logo na era da comunicação.
Fala, assim, o ministro da Educação, dando ênfase ao folclore. Muito interessante, brasileiríssimo (aliás, o folclore, em si, é internacionalíssimo). Trata-se de um modelo de cultura, identificado por elementos, como anonimato, tradição e transmissão oral. Por isso mesmo, o folclore nunca precisou de planos oficiais a fim de existir. Existe. É. Mas imaginemos o contrário, que o ministro não gostasse de folclore, que encomendasse ao Conselho a extirpação dele do plano. Haverá algum ato governamental que acabe com folclore?
Nós acreditamos que qualquer institucionalização obrigatória, ou mesmo preferencial, destinada, não só ao folclure, como a qualquer outra coisa, configura mais um estreitamento à criação. Ou contrafação. Quando o intelectual urbano, continuando ainda os exemplos, faz algo fora de sua vivência, como arte ou literatura folclorista, encaixa-se, geralmente, naquele termo lapidar de Oswald de Andrade: "macumba para turistas".
Enfim, a insinuação aos produtores cinematográficos de que se voltem para os temas históricos. Com que infra-estrutura? A primeira encomenda - Independência ou Morte! – rendeu dinheiro aos produtores. E nada mais. Mesmo porque, sem os ídolos da Tv, Tarcísio Meira e Glória Menezes, a vaca iria pro brejo.
Está aí, para a criatividade, o perigo das pressões autoritárias. Nenhuma independência, sem liberdade; só morte.
Correio da Manhã
02/04/1973