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Os filhos que devem nascer

Tôda ética pressupõe uma dialética - o summum bonum não pode traduzir um extrato eterno. Isto mesmo, quanto à ética cristã, ficou demonstrado pelo enfoque da recente Encíclica Populorum Progressio do Papa Paulo VI. E é também a ratio dialética que concretiza uma estética de se situar no mundo. A palavra progresso, por seu turno, possui uma conotação bastante realista, no sentido da evolução dos bens materiais, tomada em relação com a idéia de processo ("a imanência do infinito dentro do finito", Segundo Whitehead) ou de transformismo ou do rio de Heráclito. Se não levarmos isso em conta, bastaria partir da suposição de que, se Eva, em vez da maçã, houvesse engolido a pílula, a questão do contrôle da natalidade nem poderia sequer permanecer em debate.
Poder-se-ia - aí sim - tentar a verificação da existência de algum fundo ético, face a dualidades como usar ou não usar a pílula, produzir ou não produzir a pílula. E, na realidade, êle não existe. Dentro da acepção básica, lata, functional do humanismo, as restrições de consciência para o indivíduo estão sempre vinculadas ao evitar qual excesso de ação que prejudique os direitos socialmente suportáveis de terceiros ou que restrinja a liberdade de outrem. E tal concepção tanto sere para o neopaganismo que floresce no ocidente, incorporando, é claro, as conquistas do humanismo cristão, como ainda para o mesmo cristianismo. Mais não fosse, bastaria citar novamente a Populorum Progressio, onde Paulo IV reconhece que, muitas vezes, o crescimento demográfico acelerado prejudica o desenvolvimento, quando o volume da população cresce com mais rapidez do que os recursos disponíveis. Admite, então, o Papa, que os Podêres Públicos - dentro dos limites de sua competência - possam intervir no problema, mediante informacães apropriadas aos governados e a adoção de providências convenientes, desde que de acôrdo com as exigências da lei moral e respeitando-se a liberdade dos esposos. Reconhecendo o direito inalienável à procriação, Paulo VI vincula-o ao princípio da responsabilidade existencial, ao asseverar que, aos pais, com pleno conhecimento de causa, cabe decidir o número de seus filhos a ceitando suas responsabilidades perante Deus.
Já não há pois como falar, no mundo cristão, em desumanidade, imoralidade e outras inverdades proibitórias com referência à questão do contrôle da natalidade. A norma sagrada, milenarmente repetida - "crescei e multiplica-vos” - recebeu, com o processo, as suas condicionantes limitativas do humanismo. E, especialmente, no seu enfoque dentro da era da segunda revolução industrial e as contradições do retardo econômico e social que vicejam no bôjo geográfico. Crescer e multiplicar não pode ter uma inferência absoluta, a preço de ser um mero comando alienante, a resultar no crescimento da miséria ou da moléstia cu na multiplicação da morte. Pois não se trata da morte amadurecida ou consentida e, sim, da morte retrógrada.
Nem se trata, por outro lado, de ressuscitar Malthus e sua lei. Hoje, o equacionamento é diverso. Basta partir da idéia de que os malthusianos históricos viviam numa etapa já ultrapassada pela industrializadão e desconheciam a pílula.
O animus de limitar, controlar, a procriação, da parte do ser humano, vem de muito longe e se concretizava nos recursos mais variados, de acôrdo com a própria evolução científica e de uma moral mais ou menos fechada pela coerção daquilo que se chama moralismo (deturpação da moral). Esse moralismo teria de ruir quando o progresso material, com a indústria da pílula, proporcionou maior confôrto à atitude daquêles que, por imposições, sejam pessoais ou sociais, desejavam dêle se libertar. Hoje, não há como evitar uma nova concepção, um novo conceito para o comportamento humano frente ao problema. O homem medianamente civilizado no mundo cristão, isto é, com o acesso a um mínimo de informações atualizadas e a um mínimo de bens de consumo, propiciados pela indústria controla o número da família. Dentro dessas condições de acesso e conhecimento de causa, só o requinte ou alguma obsessão é que leva ao descontrôle. E, aí estão novamente todos os fatôres éticos, estéticos ou dialéticos. Lembramo-nos de um dos contos mais interessantes de Maupassant, Beleza Inútil, onde o marido, obsessivamente ciumento da mulher, por ser ela extraordinàriamente bela, exacerbava na procriação, mantinha-a quase em permanente estado de gravidez, a fim de tentar enfeiá-la e perder a razão do ciúme. E sempre fracassava. Mas, aqui, não interessa a moral da fábula, dentro do conto, e, sim, o exemplo da deturpação do "crescei-vos e multiplicai-vos". Pois o culto à beleza física é também um dado da civilização; não pode ser descartado, a preço de também, então, ser válida à destruição da obra de Michelangelo ou Rodin.
Quando o indivíduo opta pelo contrôle da natalidade não figura nisso, portanto, qualquer embate ético. É tão-somente uma escolha dentro da apropriação julgada mais funcional para um estar no mundo. E, como o ser não é uma entidade abstrata, funda-se exalamente no estar (obedecido um mínimo de condições gerais de racionalização), o aperfeiçoamento dêsse mesmo ser é correspondente à funcionalidade do estar, numa libertação máxima de restrições. Aqui não pairam fantasmas do bem ou do mal. Imoral, pecaminoso, criminoso, seria, sim, impedir que os seres possam exercer êsse direito essencial de opção. O êrro ou o acêrto são apenas de natureza amoral, como o próprio amor é amoral ou também o centro da discussão: a procriação biológica. Pois seria também absurdo indagar se a natureza é moral ou imoral.
Dito isto, caberia indagar qual a ética para o Estado face à questão, o limite da ação dos governantes. Ora se governar é promover o bem público, uma política de ação, face à pílula, terá de tomar em consideração, não mais apenas o direito individual de opção, mas o interêsse social. Assim sendo, uma política de exercício do poder encontra a sua limitação ética no fato de ser imoral que os governados, isolada ou coletivamente, sejam obrigados a fazer o que convém à diretriz estatal. Obedecido o direito individual, nada impede, como disse Paulo VI, que os governantes se orientem pelo contrôle demográfico. Num país como o Brasil, por exemplo, sabe-se que êle é essencial nas regiões mais atrasadas. As populações que vivem em penúria, sem recursos, ficam, por causa disso, desprovidas da capacidade de opção, seja pela carência de informações, seja pela impossibilidade de acesso aos meios mais eficazes de limitar a natalidade. E, com vistas ao caso, tanto é alienante colocar uma moral obtusa de natureza religiosa, como aceitar a chamada estratégia da "linha chinesa" do falso marxismo (Marx, hoje, como um clássico já é também um humanista, com aquilo que permaneceu válido de sua obra). Essa estratégia existe em função do raciocínio de que, quanto maior o número de pessoas na miséria, mais rápido virá a revolução. Isto, porém, não corresponde sequer ao materialismo dialético; é fazer do materialismo uma aferição estática, transformá-lo num culto místico ou numa religião insolitamente defasada.
Em suma, no parti-pris democrático, tendo em mira o processo e o desenvolvimento, o Estado age em têrmos sociais, mas não violenta a liberdade de opção. Mesmo porque, havendo opção, quanto mais informado e situado, o indivíduo há de fazer a escolha propícia ao seu bem-estar, às solicitações de sua liberdade essencial, que não se confunde com a mera liberdade de uso, a liberdade externa, mas com o saber se conhecer e ser responsável a partir dêsse autoconhecimento. Esta, a condição sine qua non de uma ética autêntica, com uma abertura permanente à apropriação functional do progresso dentro do processo. E a pílula incentiva a ética, pois, à opção da natalidade, confere uma base mais humana.

Guanabara em Revista nrº7
01/07/1967

 
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Os filhos que devem nascer
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Forma e fonte
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