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Ninguém ri por último nas fábulas do povo

Dois portugueses - obviamente Manuel e Joaquim – o primeiro sabe nadar, o segundo não - vão passear de bote, esse vira - Manuel vai nadando à toda para a margem do lago, enquanto o amigo pede-lhe socorro - Manuel chega ofegante à margem e exclama: "upa! Agora que já estou salvo, vou salvaire, vou salvaire ó Joaquim"- e, incontinente, cai n' água novamente.
Um homem, uma mulher e um papagaio são os únicos sobreviventes de naufrágio, chegados à ilhota deserta – nada a fazer - o homem tira do bolso o que lhe restou, um baralho, e convida a mulher para jogar, valendo um beijo - ela aceita, o homem ganha a aposta - jogam a segunda, valendo então um abraço bem apertado e ganha o homem de novo - para a terceira, combinam então a aposta mais radical possível – é quando, então, o papagaio fala: "carta pra três!".
Eis a anedota, com a surpresa do desfecho, como nesses dois exemplos clássicos. Além do português e do papagaio, as personagens mais comuns são o menino Juquinha, os politicos em evidência ou acontecimentos que assolam a chamada "opinião pública". A anedota pode ser ingênua (o engraçado familiar), fina, apimentada e obscena. É raro saber a origem delas, porque, na medida em que vai sendo difundida, os seus contadores vão aperfeiçoando-a. No Brasil, mormente no Rio de Janeiro, onde impera aquilo que Nelson Rodrigues chama de "molecagem" do carioca, contar anedotas é um prazer diário. Há nisso tudo um misto de descompromisso e de uma espécie de furor anárquico da autocrítica.
Mas além da
vox populi, sua principal fonte, pode-se encontrar o fabrico da anedota no rádio, televisão, teatro de revista ou no trabalho dos humoristas profissionais. Millôr Fernandes, por exemplo, há cerca de vinte anos, naquele seu Pif-Paf de O Cruzeiro, inventou uma das piadas antológicas de salão: um sujeito encontra velho amigo o qual não via há anos - para comemorar o evento, faz-lhe os mais variados convites, sempre negados com a ressalva, "já fui uma vez e não gostei" - até que ele reclama do amigo de não gostar de fazer nada, ao que o outro responde: "é, mas tenho um filho que faz tudo isso para que você me convidou" – pergunta então o amigo: "filho único, não?".
Em muitos casos, determinada anedota circula com tal intensidade que, amiúde, retoma à boca de quem a inaugurou completamente alterada, na forma e no fundo. De qualquer modo, ela, em si, quando se reporta a fatos ou pessoas, representa uma espécie de julgamento do povo a respeito deles. Veja-se no caso de todos os presidentes da República que tivemos: são sempre personagens de anedotas e a sua atuação dentro delas, corresponde a um estereótipo de comportamento, emerge daquilo que humanamente mais os caracteriza no consenso geral. Verdade que tal caracterização, por força do convencionalismo, recebe um exagero, uma caricatura functional às necessidades do relato: o realismo não tem graça, nem a imparcialidade.
Mas o que é, estruturalmente, uma anedota? De início, pode ser situada dentro da faixa do que se chama humorismo - é uma variante dele. Mas encerra dois elementos essenciais, já que o terceiro - a surpresa - é apanágio do riso e de qualquer obra de arte. Ninguém rirá sem ser surpreendido. Na anedota, com tal objetivo, entram duas contingências básicas: ao contrário do humor visual ou puramente formal, ela exige, geralmente, um elemento de fabulação, isso é, narra-se uma pequena estória e, em paralela, o meio de transmissão é sempre oral. Transmitir uma anedota por escrito não é "contar uma anedota", com toda a carga implícita no termo. Pois, além da pequena estória propriamente dita, existem as innexões, a catarse, em suma, a participação, necessariamente histriônica, de quem vai contá-la. E quanto maior o grupo de ouvintes, melhor. O riso é uma bola de neve de boca em boca: quanto maior a audiência, tudo fica mais engraçado - é um fato que pode ser testado em cinema, teatro, circo etc.
Falar de fabulação obriga a notar que, em várias ocasiões, a anedota se assemelha às fábulas propriamente ditas, de alcance moral. Alguém foi fazer algo de errado e tomou uma lição. Isso acontece até nas piadas obscenas. Outras vezes, contudo, o caráter de fabulação está ausente. São muito comuns as anedotas curtas, que comparam duas coisas ou duas situações, dotadas de tendência epigramática, ou aquelas extremamente sintéticas, nas quais se explica, por exemplo, qual o motivo que determinada pessoa passou a ter determinado nome, geralmente pitoresco. Dentro disso, a vox populi é muito crítica e satírica, no sentido de nomear ou batizar insolitamente atos do Governo ou das autoridades. E, no Brasil, o germe da gozação é tão grande que, mesmo nas tragédias de comoção nacional, entre o luto e o sofrimento, surge a anedota usando esses fatos como leitmotiv. Porque o riso também é psicologicamente encarado como expressão corpórea de libertação e o desejo coletivo de superação do princípio da autoridade e das convenções é muito forte.
"Ri melhor quem ri por último": trata-se de um provérbio inútil dentro do nosso fluxo ininterrupto de anedotas. Pois está sempre um motivo de riso se sobrepondo a outro. Quem ri por último? Ninguém ou então todo mundo. E há o prazer incontida de fazer rir. No tocante à anedota, o privilégio não é só de quem escuta e tem o prazer da surpresa que gera o riso (quando não se trata das piadas infames, logo relegadas ao ostracismo público). Há o enorme gosto de contar, com todo o rigor dos detalhes. Quando alguém, invariavelmente, ouve uma nova anedota, faz questão de difundi-la imediatamente e de aperfeiçoá-la, se achar que é o caso. Mesmo porque, não fosse assim, inexistiria a difusão larga e instantânea que percorre e cobre uma cidade inteira em dois ou três dias. A seguir, a anedota viaja para outras cidades, de carro, ônibus, navio, trem ou avião. Está consagrada.
A anedota não deixa de ser uma espécie de forma simbólica, usando a terminologia de Cassirer, a denotar o espírito de um povo, pois, conforme o país, a região e até o município, existem variações de recorrências temáticas e expressivas. Serve, por exemplo, para evidenciar a modalidade anárquica do temperamento brasileiro, que executa uma autêntica demolição, pelo riso ou pelo deboche, dos "valores estabelecidos", ou a sofisticação e excentricidade do inglês, levadas de tal forma às últimas consequencias, que desembocam no absurdo. O absurdo, por sua vez, manifesta-se na forma de um jogo sonorista, como nesta anedota antológica do sujeito que foi ao psiquiatra curar-se de um cacoete:
DoENTE - "Doutor, grr, grr, eu vim aqui, grr-grr, para ver se o senhor, grr-grr, consegue me curar, grr, grr, deste cacoete, grr-grr, que é aliás, grr-grr, um defeito de infância, grr-grr."
DouTOR - "O senhor fez bem em me consultar pois essa é a minha especialidade e, hoje em dia, não queira saber o avanço da psicologia para a cura de males como o seu."
DoENTE - "O senhor, grr-grr, me alivia, grr-grr."
DouTOR- "O seu caso, por exemplo, me parece simples e, a fim de tratá-lo, vou usar o método direto, análogo ao das vacinas, ou seja, a eliminação do óbice por substituição através de um óbice artificial. Para iniciar o seu tratamento comigo, o senhor, a partir de hoje, faça o seguinte exercício: na hora de emitir esse ruído desagradável e compulsivo, não tente evitá-lo - pelo contrário, controle-se e substitua-o por outro intencional. Assobie, por exemplo, faça fiu-fiu. Com o tempo, o senhor estará habituado ao assobio, mas poderá eliminá-lo, quando quiser, de sua fala e, assim fazendo, acabará por eliminar também o ruído de seu cacoete."
DoENTE - "A sua simplicidade, grr-grr, é fascinante, grr-grr."
DouTOR- "Então, estamos combinados, o senhor comece o tratamento a partir de hoje mesmo e, daqui a uma semana, volte ao consultório a fim de ser examinado. Passe bem."
DoENTE - "Daqui a uma semana, grr-grr, estarei aqui, grr-grr. Passe bem, grr-grr."
Decorrida uma semana, retomou o doente muito entusiasmado, assobiando eufórico.
DoENTE - "Senhor doutor, fiu-fiu, como está vendo, fiufiu, graças ao seu, fiu-fiu, maravilhoso tratamento, fiu-fiu,já estou bem melhor, fiu -fiu, do meu cacoete, fiu-fiu. Há no entanto, fiu-fiu, um problema, fiu-fiu: não sou rico, fiu-fiu, sou assalariado, fiu-fiu, e desejaria saber, fiu-fiu, quanto o senhor, fiu-fiu, vai me cobrar, fiu-fiu, pelo tratamento, fiu-fiu."
DouTOR - "Mas certo, é natural, e compreendo perfeitamente o seu caso, que, aliás, é o de muitos outros nos dias de hoje - vou lhe fazer um preço bem camarada."
DOENTE - "Obrigado, fiu-fiu."
DouTOR (depois de pegar na caneta e rabiscar ligeiramente um bloco) - "Levando em conta o seu pedido, cobrarei apenas 20 mil cruzeiros novos pelo tratamento."
DoENTE - "Puxa! fiu-fiu - bem, senhor doutor, fiu-fiu, daqui a uma semana, fiu-fiu, volto para lhe dar uma resposta, fiu-fiu, se continuo, fiu-fiu ou não, fiu-fiu, com o tratamento, fiu-fiu- passe bem, fiu-fiu."
Uma semana depois, retorna o doente ao consulrório do doutor.
DouTOR - "Como é, o senhor já se decidiu?"
DOENTE - "Senhor doutor, fiu-fiu, eu vim aqui, fiu-fiu, para lhe dizer, fiu-fiu, que o senhor, fiu-fiu, fique com o seu fiu-fiu, que eu fico com o meu grr-grr."

Revista do Diner\'s
01/04/1968

 
Wiener ou Cibernética
Correio da Manhã 12/04/1964

OP X POP uma opção duvidosa
Correio da Manhã 02/10/1965

Mitos políticos
Correio da Manhã 31/10/1965

Cristãos & Ocidentais
Correio da Manhã 22/12/1965

Moral & Salvação
Correio da Manhã 13/01/1966

Semântica & Nacionalismo
Correio da Manhã 25/02/1966

Ruínas de Conímbriga
Correio da Manhã 19/10/1966

Coimbra: canção e tradição
Correio da Manhã 09/11/1966

Beatnicks: protesto solitário
Correio da Manhã 10/05/1967

Os filhos que devem nascer
Guanabara em Revista nrº7 01/07/1967

Despir os Tabus
Correio da Manhã 12/01/1968

Ninguém ri por último nas fábulas do povo
Revista do Diner\'s 01/04/1968

Muro e Turismo
Correio da Manhã 02/08/1969

Dogma & dialética
Correio da Manhã 10/09/1969

Forma e fonte
Correio da Manhã 16/09/1969

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