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Mitos políticos

A denotação do termo mito pode ser entendida como uma presentificação da cosmologia, pelo emprego do método afetivo de representação simbólica. As palavras ou imagens míticas, envidando propiciar representações do que se denomina verdade, escapam às limitações dos seus significados literais. Ou enfim, como explica Ernst Cassirer, mediante uma forma simbólica, traduzem um esforço de captar a realidade.
Foi, aliás, esse filósofo quem, na sua última obra,
O Mito do Estado, proporcionou um dos melhores enfoques históricos e epistemológicos do problema dos mitos políticos. Logo no princípio desse livro, Cassirer faz notar a obviedade da preponderância do pensamento mítico sobre o pensamento racional e alguns de nossos modernos sistemas políticos. Fazendo, a seguir um levantamento crítico das várias teorias relacionadas ao assunto, ou seja por exemplo, o animismo de Tylor, o famoso The Golden Bough, de Frazer, a antropologia de Lévy-Bruhl, a mitologia comparada da escola de Max Mueller, que considerava o mito uma mera doença da linguagem, a sociologia de Herbert Spencer, a psicologia das emoções de Ribot, ou as descobertas de Freud, chega a conclusões sobre a impossibilidade de encarar a questão, em todos os seus aspectos, mediante o instrumental privativo de determinada ciência. Pois aquilo que também se define como uma objetivação da experiência social do homem não é por esse aferido consciente e intelectualmente como um símbolo, mas como a própria realidade. Implica em determinados ritos, levando à catarse emocional e coletiva. Depois de Thucydides - "o primeiro a abordar a concepção mítica da história" - Cassirer passa em revista a luta contra o mito no desenrolar cronológico das teorias políticas, interpretando, nesse sentido, Platão e o mundo grego, o universo da Idade Média, a importância do Príncipe, de Maquiavel, a primeira ars politica ("O Príncipe não é um livro nem moral, nem imoral; é simplesmente um livro técnico"), o "contrato social", de Rousseau, a época da Ilustração, o pensamento de Carlyle, com as primeiras tentativas de trocar o culto de deus pelo do próprio homem ("a forma medieval da hierarquia, transformou-se na forma modema de hero-archy"), isso é, o culto ao herói, a teoria das raças de Gobineau, e enfim, uma das fontes supremas do pensamento moderno-Hegel-com as alas direita e esquerda de sua filosofia.
E, ao comentar as técnicas dos mitos modernos, Cassirer, morto ao terminar seu livro, sob o impacto do fantasma de Hitler, denuncia os ritos dessa magia social - e que, em muitos casos, pode inferir uma doença incurável da democraciapedindo a atenção para o conhecimento profundo dessas técnicas do inimigo, pois a filosofia já se mostrou incapaz de, sozinha, enfrentar o mito, imune a este à simples racionalidade dos argumentos. O que aquele autor prega é justamente a identificação máxima da ratio funcional entre os homens, os politicos e os votantes, a fim de evitar uma espécie de neobarbarismo, dos totalitarismos que asfixiam o desenvolvimento e a desenvoltura ético-social do indivíduo. Trata-se exatamente da perspectiva - podemos dizer - apolínea, em contraposição ao exaltado parti-pris dionisíaco de Nietzsche. Este último, no seu Nascimento da Tragédia, entende que toda cultura que haja perdido seu mito, perdeu, ao mesmo tempo, a sua criatividade sadia e natural. Ao estudar as constantes do mundo grego, Nietzsche conclui que uma nação se atrofia, quando emerge nas solicitações do raciocínio lógico (no caso da civilização grega, essa decadência teria sido acionada por Sócrates) e perde a grandeza do culto dionisíaco. Essa, a sua visada alógica e amoral. E, por outro lado, embora os seus ataques e a sua denúncia do cristianismo ainda possuam, hoje em dia, maior atualidade do que na época, não há por que negar que certas modalidades de afluxos emocionais, irracionais, tenham mesmo permitido caracterizar aquela ponte que foi, dele, ao espírito nacional-racista do nefasto hitlerismo. A negação de Nietzsche da piedade, afirmada direta e ostensivamente na Genealogia da Moral, encontrou um eco deturpado, por exemplo, nos campos de concentração do nazismo. Pois a apropriação do que seria a dinâmica ética e estética de um neopaganismo, na era da Segunda Revolução Industrial, da automação, da conquista espacial, enfim da hegemonia da máquina, transformou-se numa desapropriação primitiva, delirante, já que tal aferição deve tomar em consideração - e, não ingenuamente renegar - as conquistas do humanismo propiciadas pelo cristianismo, Donner un sens plus pur aux mots de la tribu - esse mandamento de Mallarmé conferido aos poetas indica genericamente qual a vereda do racionalismo sensível, que, sem abdicar da criação e renovação permanente, vacinaria a linguagem contra os germes do mito. É, discriminando os campos especializados, mais do que todas, precisaria a linguagem política dessa purificação.

Enfocando agora a questão, em termos do nosso processo político-ideológico, não será difícil ver como o appeal irracional do mito perturbou o desenvolvimento de uma razão democrática. É bom notar, estamos tão-somente procurando isolar e colocar em foco os fatores míticos, reconhecendo mesmo que a interferência de seus impactos, em certas contingências importantes, chegaram até a contribuir como vigoroso aríete contra estruturas econômicos obsoletas, contra a imensa desigualdade de classes, a sacudir conservadorismo dominantes. A prática moderna do que se denomina democracia, com os regimes e sistemas vigentes (voto, direto ou indireto, independência de poderes, liberdades individuais e de pensamento, o máximo de afastamento possível das Forças Armadas dos centros de decisão política e administrative etc.) por motivos já fartamente estudados, ainda não possui, entre nós, uma tradição de aperfeiçoamento paulatino, amesma democracia, em suma, não detém aquelas raízes do uso e costumes com a profundidade necessária. Ora, isso implica no perpassar constante de uma ratio, de um animus habitual de preservar as regras do seu jogo, fundadas naturalmente por um estar dentro do fato político, sem precisar do esforço de uma consciência autovigilante de cada um, de suas attitudes de contenção.
Assim sendo, essa imaturidade faz com que a democracia esteja ameaçada, tanto pelos totalitarismos que venham, de cima para baixo - vamos dizer, a tirania não consentida ou por aqueles, emergindo de baixo para cima, das massas impelindo seu representante único para as cúpulas. Não é apenas um fenômeno dos países menos desenvolvidos essa falta de imunização popular quanto à inoculação da magia, no excesso de rituais alegóricos na busca de identificação pessoal ou de grupos com homens, tendências e partidos. A medida apenas é da quantidade, condicionados os seus índices pelos graus de desenvolvimento material e estrutural de uma dada nação.
Depois da revolução de 1980, cuja principal importância, num estar dentro da sociedade, talvez seja a eliminação radical da superposição de castas - até então, ainda animada por resquícios do colonialismo e da escravatura – para transformá-la em (ao mesmo tempo em que denunciando automaticamente a) superposição de classes, regida pela superposição de grupos econômicos, começou a nascer a mítica do sr. Getúlio Yargas. O período da ditadura consolidou a sua imagem sobre o mapa de todo o país, preparando a grande arrancada emocional sobre a coletividade, em 1945. Na realidade, quando foi deposto pela primeira vez, logo depois, retirado em Itu, já estavam em circulação diversas modalidades de objetos consolidando o fetichismo getulista, além do queremismo e slogans, como o famoso "ele voltará". Tal desejo retornista ia de encontro à impopularidade do governo Dutra, quando, inclusive, passadas as fanfarras da vitória na guerra, brotava o antiamericanismo, consequência daquela consciência crescente do que se convencionou chamar de antiimperialismo. A avalancha Vargas foi irresistível, a vitória foi avassaladora sobre seus adversários eleitorais. Nos comícios, bastava anunciar a sua saudação de sempre - "trabalhadores do Brasil" - para acionar uma descarga catártica na massa. E depois, no poder, acuado por pressões externas e, inteiramente, pelas denúncias do "mar de lama", quando tudo parecia leválo, enfim, ao desgaste do prestígio popular, sobreveio o derradeiro lance - matou-se, deixando uma carta-testamento. Deixou aberto até hoje o foco da catarse. Daí, a mística do cadaver e aquela permanente identificação com o trabalhador (já passando do pai para os filhos) na toada do ritual, nos moldes de culto litúrgico - o herói político. A imagem mítica do cadaver ficou tão forte, tão dominante, principalmente à vista do eleitorado das classes mais pobres, que quase todos os politicos de maior evidência, independentemente de idéias ou partidos, com maior ou menor disposição, embarcaram no cadaver para chegar à boca das umas: é o caso dos srs. Ademar de Barros e Jânio Quadros, rivais tradicionais, do sr. Juscelino Kubitschek, do sr. João Goulart, que se apossou do título de herdeiro de Vargas, do sr. Leonel Brizola, parente do herdeiro, e até mesmo, em certas ocasiões, do sr. Carlos Lacerda, acusado como principal responsável pela conjuntura que levou o ex-presidente ao suicídio. E - há pouco - assistiu-se ao sr. Negrão de Lima, com todo o chapéu gelô embarcando no cadáver disparando eleitoralmente na Guanabara. Aliás, a seu modo, todos os políticos acima citados procuram a identificação popular na base das representações emocionais, no apelo irracional, deixando de lado os programas de governos: é só lembrar a desinibição do sr. Ademar de Barros, os trejeitos e atitudes insólitas do sr. Jânio Quadros, a serviço de uma espécie de messianismo expressionista - ou, recordando um caso menor, mas não menos exemplar, o sr. Tenório Cavalcanti, de capa e metralhadora, recebendo, há cinco anos, mais de 220 mil votos na Guanabara.

Essa alegoria, essa liturgia de identificação simbólica com a verdade, é que justamente transforma a mera liderança política em mitologia política. Quando o eleitor reage apenas em termos de liderança, ele está contido no âmbito de um racionalismo dialético, mesmo quando esteja, em dados momentos dotado da consciência de que apenas um governo forte pode solucionar os problemas do país. Mas, tomado da alienação diante do mito, ele é capaz de apoiar qualquer aventura, quaisquer oscilações ideológicas do objeto do seu culto, em favor dessa catarse. É fácil, sob tal ângulo, dar um exemplo brasileiro, entre o que separa a tendência de liderança e a tendência mítica. O sr. Miguel Arraes, caso amanhã resolva deitar um manifesto apoiando o marechal Castelo Branco, perderá provavelmente quase todo o seu eleitorado, pois o ex-governador sempre agiu mais na faixa da liderança. Já, em oposto, o sr. Jânio Quadros, naquela sua época de ascensão delirante, poderia trocar de idéias e aliados ao seu belprazer, porque conservava a maioria do eleitorado, e ainda arrebanhava parte daquele de novas áreas.
Se, em paralelo, o marechal Castelo Branco é impopular, o motivo disso não reside apenas no plano econômico-financeiro do sr. Roberto Campos ou pelo mero fato de abrir luta contra o Congresso (nos meses em que exerceu a presidência, o sr. Jânio Quadros, por exemplo, encontrava respeitável ressonância popular em sua luta contra esse Congresso). Falta-lhe a empatia da identificação com as massas, a carranca do Executivo não encontra um elo de fundamentação simbólica que a torne convincente. E aqui, as consequências se agravam, nessa atualidade nacional. Quanto mais pressionar e arrochar as liberdades, em favor da execução de um plano administrativo e de uma ideologia, de uma espécie de francomaçonaria de militar de gabinete de seu governo, em paralelo, se transformando numa fábrica de Brizolas. "Os corruptos e subversivos não voltarão", diz o ministro da Guerra, sem notar que, todavia, quanto mais amplia a imobilização democrática, mais apoio popular estará dando aos corruptos e subversivos. E, se esse governo optou pelo racionalismo dos métodos, estruturalmente estribados na política do sr. Roberto Campos, maior a sua responsabilidade, já nem diremos em face da democracia, mas do que se entenderia por uma civilização brasileira. Pois, a continuar assim, ampliando-se o terror, o medo, a insegurança, o público recorrerá maciçamente ao antídoto da irracionalidade da fé: a fé nos carismas, nos messiânicos, enfim, no primitivismo ideológico.
Só com a prática integral - madura ou ainda imatura – da democracia, é que a possibilidade de diminuir a política primitiva dos mitos poderá efetivar-se. Caso contrário, desabase o irracionalismo compulsivo e poderemos passar a viver ao toque de várias marchas da família com Deus pela liberdade, quando a verdadeira liberdade, a liberdade essencial de cada um - a velha eudemonia de Platão - é aquela que, na realidade, prescinde do culto à Deus ou à família.

Correio da Manhã
31/10/1965

 
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Correio da Manhã 31/10/1965

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Revista do Diner\'s 01/04/1968

Muro e Turismo
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Dogma & dialética
Correio da Manhã 10/09/1969

Forma e fonte
Correio da Manhã 16/09/1969

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